TABUA OUIJA "Tem alguem ai?" (Relato de uma experiencia)

A respeito de Tabuleiro Ouija, vou contar um caso que eu testemunhei muitos anos atrás, quando eu era moleque e que pode ser considerado como minha primeira exploração do oculto - ou nem tanto.
Não estou pedindo para que acreditem, para falar a verdade, nem eu lembro de todos os detalhes  e alguns vou suprir com algumas invenções, mas no geral, foi como aconteceu e enquanto escrevia fui lembrando de mais algumas coisas. Na época o acontecimento me deixou uma grande impressão, que é uma forma educada de dizer, "quase me borrei todo".

Eu devia ter uns 12-13 anos, e nessa época foram lançados os livros da Coleção Ciências Proibidas.

Não sei se os mais novos vão saber do que se trata, mas quem está na casa dos 35-40 anos deve se recordar que essa coleção em fascículos quinzenais marcou época. Ela se propunha a ser uma Coleção sobre Ocultismo, uma verdadeira Enciclopédia do Sobrenatural que cobria em cada volume um tema diferente com assuntos espinhosos tais como Bruxaria e Satanismo, misturado a outros mais inofensivos como Interpretação de Sonhos, Civilizações Antigas e até O Fenômeno OVNI. Muito do que estava ali não passava de papo furado, mas, não obstante, esses livros ficaram famosos.

Ter esses volumes de capa dura, encadernados em preto, era o mesmo que ter algo proibido, assustador, quase profano na estante... ou assim parecia aos olhos de um moleque curioso como eu. Francamente, eu nem cogitava a possibilidade de comprar e menos ainda guardar isso em casa. Sério, minha mãe simplesmente iria me matar se descobrisse uma coisa dessas em meu poder.

Contudo, um amigo do colégio era mais "corajoso" que eu, ou ao menos, seus pais não se importavam com onde ele decidia gastar sua mesada. Vou chamar ele de Guilherme. 

Guilherme era o tipo do garoto que a gente sabia, não deveria andar junto: pra começar, ele parecia entender bem demais as piadas sujas que contava, tinha má fama entre os pais ("Não quero você andando com ele"), já tinha sido suspenso duas vezes uma delas por xingar uma professora e epetiu de ano. E agora, suprema transgressão, tinha em seu poder um volume de Ciências Proibidas. 

O primeiro volume da Coleção, tinha o sugestivo título "Iniciação ao Espiritismo" e trazia uma capa absurdamente sinistra na qual despontava a face de um ser demoníaco de olhos brancos, pele amarelada e chifres. Nunca vou saber porque escolheram uma capa dessas, mas provavelmente tinha a ver com chocar e assim atrair público. Como acontece hoje em dia, a primeira edição trazia um chamariz, um brinde para motivar a compra dele e das edições futuras, no caso, o brinde era tentador demais: um Tabuleiro Ouija.

Até aquela época eu acho que nunca tinha ouvido falar dessas coisas. Sem dúvida já conhecia a tal brincadeira do copo, aquela história de colocar um copo sobre a mesa, os dedos pousados sobre ele e espalhar um monte de pedaços de papel com as letras do alfabeto. Movido pela força de vontade dos espíritos - ou por algum engraçadinho que queria manipular a coisa, o copo deveria avançar por conta própria e soletrar palavras que respondessem as perguntas feitas. É claro, jamais funcionou, para frustração e alívio de todos.

Primeiro por que ele parecia algo autêntico e não uma brincadeira de algum fulano que queria contar vantagem e que "conhecia um primo que tinha feito a tal brincadeira e o copo havia se mexido de verdade". E segundo, por que ele vinha em um livro como Ciências Proibidas. 

"Ciência" soava como verdade.

Enfim, num belo dia, o Guilherme levou seu tabuleiro Ouija no Colégio e propôs fazer uma experiência (ele chamou de "experiência" e não brincadeira, o que já soava diferente), após a aula. A ideia era reunir uns cinco ou seis moleques, seguir as instruções contidas no livro e assim tentar (insira aqui o som de trovões) falar com os espíritos!

Tan-tan-tan!!!!!!

Não sei o que pensei a respeito, mas tenho certeza de que me digladiei sobre o dilema moral de participar ou não, sobretudo porque naquela época eu tinha medo de toda e qualquer coisa desse tipo. Sobrenatural pra mim era assistir filmes de Jason e Freddy Kruger. Mas na mesma proporção que me apavorava, sentia aquela vontade de participar e ver o que ia acontecer, sem falar que não queria ser chamado de covarde pelos outros, um sentimento que provavelmente era compartilhado pelos demais, e convenientemente mantido em segredo.

Seja como for, lá pelas tantas, topei aparecer na casa desse colega transgressor que morava surpreendentemente pertinho dos meus pais. 

A primeira surpresa é que dos seis que tinham sido convidados para a "experiência" (Tan-tan-tan!) aparecemos só eu e mais um. Por um momento pensei que na ausência de outros, a coisa ia ser cancelada, afinal reconhecer cagaço diante de outros dois não era tão ruim, além do que, sempre era possível fingir que tínhamos feito a brincadeira e acusar os demais de amarelar. 

[Um dia alguém deveria escrever um longo tratado sobre os protocolos de coragem e covardia do que era ser criança nos anos 80. É quase um "Four Feathers" de conduta social].

Para meu desalento, Guilherme simplesmente disse que podíamos seguir adiante, de fato, segundo ele explicou com ares de autoridade, com menos gente podia funcionar melhor. "Que bom", devo ter murmurado, como quem é informado que vão servir brócolis no almoço e você terá de comer um prato cheio.

Enfim, é preciso tirar o chapéu para Guilherme que a essa altura eu já considerava o próprio ocultista. O Aleister Crowley imberbe (se eu soubesse quem era Crowley na época), o próprio mago do primeiro ano do Colégio de Freiras onde estudávamos... o sujeito tinha preparado uma mesa na sala de jantar, toalha branca, com velas, cortina fechada, luz difusa e uma aura que me pareceu incrivelmente sinistra. Complementando o cenário havia uma carranca daquelas que se compra quando se viaja para a Bahia num canto. Era uma daquelas carrancas enormes talhada na madeira, disposta na sala como se fosse um cão de guarda, ao lado de um bufet. Olhei aquele troço e lembro ter pensado com meus botões: "Quem diabos tem um negócio desses em casa?".

Era oficial, a coisa ia acontecer ali, já que os pais do Guiga (ele pediu para chamar ele desse jeito) não estavam em casa. Repousando sobre a mesa, estava o Ciências Proibidas, como se fosse um tomo de magia, o equivalente ao Necronomicon dos pobres - embora a honra de ser chamado assim fosse reservada para o Livro de São Cipriano, outro "proibidaço da época", que eu descobriria anos mais tarde (mas isso é uma outra história).

"Quer dar uma olhada?" ele perguntou quando eu disfarçadamente estiquei os olhos na direção do livro.

Claro que não queria! Aquela capa era sinistra além da conta! Eu não queria tocar naquela coisa, não queria ver de perto, achava que poderia congelar meus dedos meramente tocar nele, o que dizer de folhear as suas malditas páginas e ver o que estava ali dentro. Tudo me dizia para não fazer, toda minha educação católica de missa finais de semana e aula de catecismo me mandava dizer 'Não".

"Claro que quero!" respondi tentando esconder o receio.

Abri o livro, e sabe quando você olha mas tenta não ver? Quem tinha medo de Trem fantasma sabe do que estou falando. Folheei uma ou outra página e me dei por satisfeito, fechei o livro e pousei sobre a mesa.

"Foda!" disse saboreando o teor proibido do palavrão recém descoberto, tinha gosto de bala de menta na boca. Deixava um gosto bom quando terminava.

Demos início então aos preparativos, Guiga pediu que eu e o outro amigo, de quem não lembro o nome, mas vou chamar de Fabiano, tirássemos as cadeiras e deixasse-mos quatro ao redor da mesa. Lembro dele ter comentado: "Uma delas é para o espírito sentar".

Foda! 

Gosto de bala de menta.

Arrumamos tudo conforme sugerido no livro. Para me assegurar do que íamos fazer, achei que valia a pena ler as instruções que explicavam o que era uma Experiência com Tabuleiro Ouija. Elas eram descritas em uma folha que vinha dobrada dentro do tabuleiro. Era simples, talvez simples demais, tinha inclusive alguns desenhos descrevendo como era o procedimento e como a gente deveria fazer. Na falta de uma ponteira - o livro trazia apenas o tabuleiro, podíamos usar um copo de cristal. Guiga produziu de dentro do bufet uma taça de cristal daquelas de servir licor que os pais dele provavelmente tinham surrupiado durante um voo da Varig. No papel dizia que a taça tinha que ser quebrada depois de usar, mas duvidei que ele faria isso - EU não faria!

Sentamos ao redor da mesa, Guiga acendeu as velas, Fabiano respirou fundo, claramente incomodado e eu sentei entre os dois, ainda mais incomodado. Antes de começar, Guiga, o nosso "realizador" disse num tom solene que traia a voz que já começava a se tornar mais grossa, culpa da pré-adolescência: 

"Isso não é brincadeira, pessoal. Vamos ficar sérios! Sem piadas e sem bobagem, a gente vai chamar um espírito".

"Foda-se, vamos logo!" disse Fabiano, com um sorriso de quem se achava fodão.

Guiga disse que era melhor a gente dar as mãos para se concentrar. Na mentalidade de moleque dos anos 80 aquilo parecia "viadagem" (ou viadaji, como a gente gostava de enfatizar), mas ele devia saber o que fazia. Estendi as mãos e instintivamente pensei em rezar uma Ave Maria, dar as mãos a estranhos quando muito lembrava esse tipo de coisa. Fiquei satisfeito que Fabiano estava com as mãos tão geladas quanto as minhas.
Nisso, tocou a campainha!

"Puta que Pariu"! Guiga levantou abriu a porta e voltou uns segundos depois acompanhado por outro o colega que havia chegado atrasado. Junto dele vinha de arrasto a da irmã que tinha uns 11 anos e que queria "brincar" também.

"Porra, Bruno, tu tá de sacanagem, trouxe sua irmã? Não disse que ia ser uma coisa séria?" reclamou o ocultista mirim e nós fizemos coro de indignação.

Bruno se defendeu dizendo que se a irmã não viesse ia contar pra mãe dele e que ia melar a coisa toda. A menina, Giulia - lembro que era com "G", fez uma cara de "tô nem aí" e foi sentando na cadeira vaga:

"Essa aí não sua burra, essa é pro espírito sentar!" disse Fabiano e eu não consegui segurar a risada.

"Puxa outras cadeiras ali, senta e cala a boca se quiser participar. Mas eu não me responsabilizo pelo que venha a acontecer". 

Todos se entreolharam, Guiga mandou que déssemos as mãos de novo e que a gente se concentrasse.  Aí abriu os olhos e comentou:

"Uma coisa importante! A gente não deve perguntar quem vai morrer primeiro ou quando alguém aqui vai morrer!"

Bruno acenou com a cabeça como se concordasse e eu lembrei que quando tinha participado de uma brincadeira do copo com meus primos mais velhos, eles disseram a mesma coisa. Parecia ser um consenso que fazer esse tipo de pergunta atraía as piores coisas, a própria desgraça. Todos de acordo.


Ficamos de olhos fechados nos concentrando, tentando "limpar a mente" (seja lá o que isso significa para quem tem 13 anos). Finalmente, Guiga falou com um tom mais estridente do que desejava:

"Nós estamos tentando entrar em contato com um espírito amigo que queira falar conosco". A frase não era dele, estava nas instruções dizer isso e ele deve ter decorado.


Silêncio.

"Luciano, você, eu e o Fabiano colocamos o dedo em cima do copo, mas de leve! Não pode forçar, não é para empurrar". 

Fizemos conforme ele disse. Pousei o dedo no corpo e senti aquela sensação ao mesmo tempo desagradável e indescritível de prazer proibido.

"Muito bem, quem vai perguntar?" disse Guiga, respirando fundo e olhando para os outros com uma expressão que dizia "eu vim até aqui, agora é a vez de vocês. Façam alguma coisa".

Ninguém disse nada, ficou um silêncio constrangedor, como se ninguém tivesse certeza de que queria perguntar alguma coisa, pois... vai que tivesse resposta, né.

Quem quebrou o silêncio foi a pessoa menos provável ali na sala. Giulia perguntou: "Qual o seu nome"?

Nada! O copo não se moveu.

Eu repeti a pergunta e acrescentei um "tem alguém aqui". Não vou levar os louros pela pergunta, ela também estava entre as perguntas que se poderia fazer para iniciar a comunicação, conforme tinha acabado de ler nas instruções. 
Dois, três minutos se passaram... e aí o copo deslizou lentamente. Eu tenho quase certeza que o Fabiano (que era meio palhaço e cheio de ansiedade) começou a forçar o copo só porque queria que alguma coisa acontecesse de uma vez. A taça deslizou bem devagar até o "J". Guilherme balançou a cabeça e olhou feio para meu colega:

"Para com isso, cara! Você tá empurrando o copo!" Mandou ele tirar o dedo e sinalizou para o Bruno assumir o lugar dele. Bruno fez uma careta, pensou um instante e lembrou que não colocasse o dedo em cima, seria acusado de covardia. Acho que até ali ele achava que ia só observar: "Tá bom!", concordou resignado.


Passou mais uns instantes e repetimos as mesmas perguntas.

E novamente, o copo se moveu lentamente na direção do "J". Dessa vez eu não tinha certeza de quem estava conduzindo o copo, mas com certeza alguém deveria estar empurrando, pois do contrário só podia haver uma explicação e ela não me agradava em absoluto. Apesar de tudo, eu não acreditava que iria acontecer alguma coisa e esperava de coração que não acontecesse. Era o sentimento que corrobora o ditado "chegar pouco importa, o bacana é a viagem", pois bem, o legal era participar, ter resultado era algo completamente diferente, totalmente desnecessário.

Seja como for, o copo parou no "J", e então estacou. Passaram alguns minutos e a gente ficou em dúvida sobre o que fazer. Fabiano rompeu o silêncio e perguntou o que deveríamos fazer, Guiga ficou meio perdido e pensei que ele fosse abrir o livro e procurar alguma explicação, mas aí o copo se moveu mais alguns centímetros e parou ao lado do P.

Não parecia ter ninguém empurrando e a seriedade tomou conta de todos. 

"Vai ver são as iniciais de alguém" sugeri depois de pensar um pouco e me vi revisando na mente quem eu conhecia com as iniciais J.P, excluindo quem estava vivo. Felizmente quando temos 13 anos, não conhecemos tanta gente que tenha morrido e portanto não me veio ninguém à cabeça. Os outros também não conseguiram sugerir nada.

Nisso, o copo andou mais um pouco. 

E percebam, não peço para acreditarem nessa narrativa, mas estou sendo o mais fidedigno possível, com base no que me recordo. O copo deslizou milímetro por milímetro até a base do tabuleiro, passou pelas letras, parou no "6" por alguns instantes, e dali se dirigiu para o "até logo" que ficava na borda inferior.

Eu tinha lido que quando isso acontecia, o espírito simplesmente tinha desistido do contato, ou que ele não queria mais se comunicar. Nesse caso, era preciso parar e esperar um pouco.

Tirar o dedo do copo foi um alívio e todos estavam igualmente nervosos, se acusando de ter ou não empurrado o copo embora nós três tenhamos jurado que não o fizemos - eu sei que não o fiz, mas reconheço que o próprio Guilherme possa ter inconscientemente feito isso, quem sabe para chamar a atenção, quem sabe para justificar a experiência.

Verdade é que nunca vou saber.

Tentamos depois de novo, até a Giulia colocou o dedo no copo e nos revezamos em perguntas e tentativas, mas o copo não andou mais. Não importava quantas vezes tentássemos, nada aconteceu e nos demos por satisfeitos compartilhando do sentimento de alivio diante daquela imobilidade reconfortante.

Antes de nos despedirmos, comentei com o Bruno que a gente não devia comentar nada daquilo com os outros no colégio. Eu tinha a certeza de que se as Freiras do Colégio ficassem sabendo sem dúvida iriam nos expulsar ou pior, contariam aos meus pais o que a gente tinha feito. Os outros concordaram, mas é claro, na hora do recreio no dia seguinte, todo mundo já estava sabendo de nossa experiência sobrenatural.

Não sei quem foi, mas é claro que alguém tinha dado com a língua nos dentes e a história já se tornara uma saga de medo e horror envolvendo espíritos sentados em cadeiras vagas e copos que deslizavam sem parar. Não vou mentir, claro que gostei da fama repentina e dos olhares de admiração, até mesmo quando os outros nos acusavam incrédulos de mentir descaradamente.

Combinamos de fazer de novo, sobretudo por que alguns outros queriam participar da experiência e que seria bom contar com a presença de quem já havia feito. Guiga concordou, disse que segunda seus pais não estariam em casa e que  a gente poderia usar o apartamento dele de novo. Eu não estava especialmente feliz de reprisar aquilo, mas acabei topando torcendo para que até a semana seguinte esquecessem do combinado, coisa que não raramente acontece quando tem essa idade.

O fim de semana passou. 

Na segunda, Guilherme chegou no Colégio e estava com uma cara meio séria. Só consegui falar com ele no recreio e percebi que ele parecia evitar os demais que haviam planejado fazer a experiência naquela tarde. Finalmente quando estava com ele perguntei o que era e ele pareceu meio preocupado como se não quisesse contar uma coisa por temer que eu gozasse da sua cara ou contasse aos demais que ele estava sendo bundão. Tive que esperar até o final da aula para que ele muito sem jeito dissesse que não ia ter experiência na tarde. Ele pediu que eu avisasse os outros. Não disse nada, apenas aceitei aquilo com certa satisfação por não ter de passar pela coisa novamente.

Levou uns dias para que eu conseguisse falar com o Guilherme de novo e ele enfim topasse contar o que o estava incomodando. Na época a gente não era exatamente amigo, estávamos muito mais para colegas de classe que se veem obrigatoriamente cinco dias por semana e que nem mesmo conheciam a casa um do outro - o dia da experiência tinha sido a primeira vez que eu fui na casa dele e até então ele nem sabia onde eu morava.

Mas enfim, quando o Guiga resolveu me contar o que tinha acontecido eu acreditei de imediato não porque eu era um moleque crédulo e impressionável, mas porque algo no jeito que ele contou pareceu real. Era o tipo da coisa que não se inventava e o tipo da coisa que a gente não mente a respeito. Seja o que for, eu acreditei naquele momento, e ainda hoje, passados tantos anos, ainda acredito.

O Guilherme contou que no dia seguinte a experiência a mãe dele o chamou na sala e perguntou se ele havia chamado gente de fora e se haviam feito bagunça na sala. Até aí, nada de mais, mães tem um sexto sentido para pequenas coisas, a minha sabia exatamente quando entravamos na sala e mexíamos nos vasos de cristal e cinzeiros proibidos. O Guilherme é claro, com o mecanismo de defesa no máximo, mentiu e disse que ninguém tinha ido lá. Aí a mãe dele perguntou algo que o deixou pasmo:

"Se ninguém veio aqui, quem foi então que rachou a carranca da sala?"

Na hora eu não entendi o que tinha a ver. Eu não sabia, mas o Guilherme fez o favor de explicar que a carranca era um tipo de objeto de proteção, para quem acreditava nessas coisas, que servia para afugentar os maus espíritos e proteger uma casa da presença de coisas que pudessem fazer mal aos seus donos. Era por isso que marinheiros pintavam carrancas na proa de seus barcos, pois no entender deles não havia nada mais perigoso do que singrar mares desconhecidos que podiam estar repletos de espíritos malignos. A carranca representava um tipo de proteção, afugentando aquilo que não se queria ter em casa.
Eu fiquei sem palavras e a única coisa que consegui dizer, recorrendo ao manto protetor do ceticismo foi repetir: "Vai se foder! Que mentira!". 

Nada de bala de menta dessa vez. Gosto de cinza e zimbro.

Eu não queria acreditar! O problema é que a cara do Guilherme e a maneira como ele contou a história pareciam perfeitamente verdadeiras, como quando você é criança e conta como um parente morreu em um acidente rodoviário. É algo sobre, nessa idade, não se mente por achar absurdo inventar sobre algo tão sério. Guilherme tinha a cara de alguém que perdeu metade da família numa colisão frontal!

Ele pediu para que eu não contasse a ninguém, e até onde lembro mantive minha promessa por muitos anos. Só fui comentar isso muito depois com colegas do Ginásio, quando já tinha perdido o contato com todos.  

Eu gosto de pensar que sei guardar segredos e que levo a sério quando alguém pede sigilo sobre alguma coisa. Mas acho que nesse caso, meu silêncio se devia a outra coisa...

Ainda desconfiado, ou desejosamente cético da história, aceitei o convite do Guilherme de ir até sua casa e ver a carranca que estava na mesma sala onde tínhamos feito a Experiência com o Ouija naquela tarde. 

Gostaria de dizer que era brincadeira dele ou exagero, mas não.

A carranca de madeira estava rachada de lado a lado, bem na face medonha pintada de branco e vermelho. Era como se ela tivesse caído ou recebido um belo de um golpe com uma lâmina, um machado ou uma faca quem sabe. A rachadura não era funda, outrossim, longa, tinha talvez uns 25-30 centímetros e se estendia verticalmente de forma que era impossível não perceber só de olhar para ela. Começava no topo e ia deslizando até a abertura da bocarra cheia de dentes.

Guilherme disse que a mãe tinha ficado chateada, mas que não se importou muito no fim das contas. A coisa pertencia ao pai dele que a comprou numa viagem a Ilhéus ou algo assim, a mãe achava que era de mau gosto, mas acabou aceitando a presença dela ali dando de ombros quando o pai insistiu. Alguns compram berimbaus, outros compram carrancas quando visitam a Bahia. Ainda bem que a família do Guiga era fã de carrancas.

O que eu posso dizer dessa história que se estendeu por mais linhas do que eu planejava?

Que as vezes, coisas estranhas acontecem e que nem sempre a gente sabe explicar ou mesmo, precisa explicar. As vezes é melhor deixar pra lá e somente contar de vez em quando, apenas para não esquecer. Eu sei no entanto, e lembro bem que quando olhei para aquela carranca feiosa na sala ("quem tem um negócio desses") a coisa não estava rachada.

Dizer que ela nos protegeu de um "espirito maligno" é meio demais, mesmo porque eu não acredito nessas coisas faz tempo, mas naquela ocasião parecia perfeitamente aceitável. E tenho certeza o Guilherme também acreditava. 

Se a carranca não estivesse na sala, alguma coisa diferente aconteceria? Se sim, quem seria o tal J.P. se é que não passava de alguém empurrando o copinho de vidro forçando seu deslize pelo tabuleiro?
Eu me perguntei essas coisas por algum tempo até perderem importância e não me incomodarem mais.

Da minha parte continuei interessado em histórias desse tipo, não por acreditar nelas, mas por me considerar um Cético com um forte Senso de Curiosidade. Em algum momento, até cheguei a comprar volumes do Ciências Proibidas em sebos pela cidade. Descobri depois de ler que os livros não eram nem de longe tão macabros quanto imaginava naquela época. Tenho inclusive a primeira edição, aquela com a capa demoníaca que a despeito de minhas descrenças continua, aos meus olhos, extremamente assustadora. Entretanto, nunca achei uma edição que viesse com o Tabuleiro Ouija, acho que quem tem não vende. Talvez, ninguém mais tenha hoje em dia.

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