Teosofia e Gnose
Teosofia e Gnose
Na
literatura teosófica, encontram-se várias referências à gnose e
ao gnosticismo, havendo até obras específicas sobre o tema
produzidas por teosofistas de primeira geração. Só na Doutrina
Secreta e em Isis sem Véu, Helena Blavatsky dedicou páginas e
páginas aos antigos gnósticos e endossou muitas de suas idéias. Da
mesma forma, os escritores gnósticos modernos têm em alta conta a
teosofia e a fundadora da Sociedade Teosófica. Um erudito de nossos
tempos, Stephan Hoeller, professor de estudos gnósticos em Los
Angeles, afirma, em recente livro, que Helena Blavatsky foi gnóstica
e contribuíu para o renascimento do gnosticismo como praticado na
atualidade. Outro autor, o alemão Arnold Krumm Heller, sacerdote da
igreja gnóstica, diz que a gnose pode ser assimilada “nos
ensinamentos da mestra Blavatsky”.
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Em
verdade, tanto a teosofia como a gnose constituem um conhecimento
religioso diferente da fé ou crença. Há um aforismo gnóstico que
diz: “Primeiro compreender, depois acreditar”. E, em teosofia, o
lema é: “Não há religião superior à Verdade”. Cabe, pois,
indagar se teosofia e gnose se equivalem, e se não, qual a diferença
entre os dois sistemas filosóficos. Para responder à pergunta, é
necessário examinar a natureza e as idéias básicas dos sistemas
gnósticos, desde suas origens no século 1º.
Gnose
é palavra grega – gnôsis, do verbo gnosko (conhecer e, também,
experimentar). Esse verbo aparece na célebre inscrição do Templo
de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo” – gnothi sauton – que
Sócrates adotou como divisa de sua pedagogia. Em sentido
etimológico, significa qualquer conhecimento, sendo o termo
empregado com essa acepção nas antigas fontes escritas. Mas, no
decorrer dos tempos (possivelmente a partir de Pitágoras), o
vocábulo foi adquirindo a conotação específica de conhecimento
espiritual obtido intuitivamente, uma iluminação interior ou visão
imediata das Verdades Supremas ou mistérios divinos.
A
busca da iluminação, entre os cristãos primitivos, deu início a
várias facções gnósticas dentro do Cristianismo, com doutrinas
diferentes daquelas ensinadas pelos apóstolos. Os gnósticos
misturavam os ensinos apostólicos com idéias da tradição judaica,
da religião persa e sobretudo da filosofia helenista, interpretando
de maneira alegórica as Escrituras Sagradas. Não há uniformidade
de pensamento entre as escolas gnósticas, pois a interpretação dá
margem a doutrinas variadas. Grandes doutrinadores da gnose foram
Basilides e Carpócrates que atuaram na cidade sagrada de Alexandria,
o principal centro do gnosticismo e também da teosofia neoplatônica
e do judaísmo helenizado. Em Roma, distinguiram-se Valentino e
Marción, os quais ganharam muitos adeptos na capital do Império.
Entre os judeus de Samaria, notabilizou-se Simão, o mago, que é
mencionado em Atos dos Apóstolos como aquele cristão que fazia
prodígios e quis comprar o dom do Espírito Santo, sendo por isso
duramente repreendido por S.Pedro. Na Pérsia, originou-se uma das
mais populares e duradouras escolas gnósticas, o maniqueísmo, do
profeta Mani, que atraiu muitos adeptos e deixou marcas profundas na
filosofia ocidental. S. Agostinho, o grande pai da igreja
predominante, foi ouvinte, durante oito anos, da religião
maniqueísta e, depois, confutou veementemente a tese sobre o mal.
Os
diversos sistemas gnósticos de que se tem notícia organizaram-se em
igrejas ou comunidades religiosas com diáconos, presbíteros e
bispos que celebravam missas e ministravam sacramentos como o batismo
e a eucaristia considerados práticas iniciáticas facilitadoras da
gnose.
Entre
os cristãos gnósticos e os não-gnósticos travou-se acirrada
disputa pela supremacia, de que saíram vencedores os cristãos
não-gnósticos, os quais perseguiram os adversários como hereges,
reduzindo-os a uma minoria. Na Idade Média, a Igreja Católica
promoveu uma cruzada contra os gnósticos do sul da França (os
“cátaros”), incluindo-os, tempos depois, na Inquisição.
Apesar
das constantes perseguições, esses cristãos de pensamento
divergente produziram muitas escrituras em idioma grego que não
constam do Novo Testamento, perdendo-se com o passar dos séculos.
Até há bem pouco tempo, o que se dispunha sobre os gnósticos eram
referências em obras apologéticas escritas por opositores do
gnosticismo. Em 1945, todavia, descobriu-se por acaso no deserto
egípcio de Nag-Hammadi, uma coletânea de cerca de 50 escrituras
gnósticas traduzidas em copta do século 4º e atribuídas a
personalidades bíblicas como o Evangelho de Tomé, o Apocalipse de
Pedro, o Evangelho de Felipe e o de Maria Madalena, dentre outros.
Para os gnósticos, “evangelho” é todo e qualquer texto que
ensine ou revele a gnose.
Há
nesses livros, cuja tradução ocorreu na primeira metade do século
passado, princípios básicos que norteiam a maioria das escolas
gnósticas:
1º)
Princípio da salvação pelo conhecimento. A gnose é salvífica e
tem como tese fundamental o autoconhecimento. O conhecimento de si
mesmo (de sua natureza e destino divinos) faz com que o homem se
liberte da ignorância e do erro e se desfaça dos apegos à matéria:
“Quando o homem vier a conhecer a si mesmo e a Deus, – diz o
Testemunho da Verdade – ele será salvo e receberá uma coroa
incorruptível”.
2º)
Princípio da divisão tripartida da espécie humana. Não são todas
as pessoas que podem adquirir a gnose, pois esta não se aprende pelo
acúmulo de informação, mas é um despertar. Os gnósticos dividem
a humanidade em três raças ou castas: a dos homens materiais (que
não cogitam de uma realidade além da matéria e, por isso, não têm
salvação nem remédio); a dos homens psíquicos (mentais e
emocionais) que com esforço conseguem salvar-se, se praticarem o
asceticismo e as virtudes morais; e, finalmente, a dos pneumáticos
(de “pneuma” = sopro, vento, espírito), os quais compreendem os
mistérios divinos e já estão salvos. Os pneumáticos ou
espirituais, uma reduzida elite, não só têm a gnose como a revelam
aos outros. Em uma de suas epístolas, o apóstolo Paulo fez a
distinção entre os homens psíquicos e os pneumáticos, dizendo que
as coisas espirituais se discernem espiritualmente e não pelo frio
raciocínio, por isso só os últimos as compreendem.
3º)
Princípio do dualismo. Há, na doutrina gnóstica, a convicção de
um dualismo em todas as coisas: dualismo cósmico (Deus “versus”
matéria ou mundo material); dualismo moral (Bem “versus” Mal) e
antropológico (Espírito e corpo material).
O
Mal não é, para os gnósticos, a ausência do Bem, como sustentam
muitos doutores da Igreja, mas um princípio operante que milita
contra o Bem, gerando dor e sofrimento. O homem foi feito de matéria
vil, porém guarda em si uma centelha divina (o Espírito) pela qual
pode retornar ao Deus transcendente, libertando-se dos laços
materiais, visto que embora a matéria milite contra o Espírito,
este tem capacidade para vencê-la.
4º)
Princípio da emanação eônica. Em geral, os sistemas gnósticos
consideram Deus como incompreensível pela razão humana e
absolutamente transcendente, sem nenhum contato com a matéria. Entre
o Absoluto Transcendente e o mundo material se interpõe um mundo
intermediário habitado por éons (anjos, na tradição
judaico-cristã), que são emanações sucessivas de Deus e
progressivamente degradadas, as quais exercem o governo do Universo.
Nosso mundo material foi criado por um desses éons bem distanciado
do Absoluto, um eón operário e pouco sábio (demiurgo) que criou o
mundo de uma substância corruptível, que acarreta a dor, a doença,
o sofrimento e o erro. O demiurgo, no entanto, arvorou-se em Deus
único, exigindo total obediência às suas ordens. Alguns povos
(p.ex., os judeus) o adoram como se fosse o Sumo Bem, da mesma forma
procedendo os cristãos ortodoxos.
Uns
eóns são bons, outros são maus; uns são masculinos, outros
femininos, uns constroem, outros destroem. Um dos mais importantes
eóns é Cristo, emanado diretamente do Absoluto para revelar a
Divindade verdadeira e libertar o homem do erro. É o mestre, por
excelência, da gnose.
Mas
há outros deuses no panteão gnóstico. Uma deusa distinta é
Sophia, o princípio feminino de Deus e, também do homem. Trata-se
da sabedoria divina personificada. É a padroeira da gnose, sendo
representada por uma mulher com asas (visto que é anjo ou eón) com
coroa na cabeça, sentada em um trono ladeado por Maria, mãe de
Jesus e S. João Batista. No alto do trono, aparece Cristo
acompanhado de seis anjos. Os gnósticos costumam chamá-la de Santa
Sophia e Nossa Senhora Sophia. ABRAXAS, filho de Sophia, é um deus
misterioso que rege o ciclo solar. Seu nome é palavra bárbara, pois
não tem origem em nenhuma língua conhecida, sendo formada por sete
letras que, no alfabeto grego, equivalem numericamente a 365. Nas
jóias e talismãs gnósticos, Abraxas aparece representado com
cabeça de galo, corpo e braços humanos e membros inferiores em
forma de serpente. Traz em uma das mãos um escudo e na outra, um
chicote. A simbologia é evidente: o galo, o despertar; corpo humano
para denotar que é uma pessoa. Com o escudo, protege; com o chicote
castiga. As serpentes indicam a ligeireza, a esperteza e a astúcia.
A
teosofia de Blavatsky assemelha-se, sem dúvida, à gnose. Primeiro,
por ser, como se disse, um conhecimento religioso diferente da fé.
Segundo, por seu um sistema de pensamento eclético que reúne
elementos de várias tradições religiosas do Oriente como do
Ocidente. Terceiro, por endossar a tese da emanação, que é
compartilhada também pelo neoplatonismo. Mas, difere da gnose, por
ser eminentemente teórica. Já o teósofo Plotino, no século 3º,
repelia os cultos e os rituais próprios das religiões, fazendo da
investigação filosófica um caminho espiritual de retorno ao Uno. A
teosofia é, sem dúvida, um caminho de espiritualidade, porém,
desprovido de culto, de rituais e de dogmas, ao passo que o
gnosticismo constitui religião com igrejas, sacerdotes e
sacramentos. Com exceção do próprio nome de origem grega, a
teosofia moderna é hinduísta, sendo o sânscrito a sua língua,
enquanto a gnose é helenista com predomínio da linguagem filosófica
(“logos”, “nous”, “eóns”, “demiurgo” etc). Além
disso, a gnose é cristã, tendo em Cristo seu grande Mestre.
Conforme Blavatsky, a teosofia e a Sociedade Teosófica têm como
mentores os mestres de sabedoria (Mória, Maha Chohan, Kuthumi,
Serapis, Hilarião etc), entre os quais pode até figurar o Cristo,
mas sem nenhum relevo. A teosofia não se considera um conhecimento
salvífico, antes sustenta a lei do carma, afirmando que o homem
recebe aquilo que semeia.