VAMPIROS (Parte 1)
VAMPIRISMO
Muitos
dos que dormem no pó da terra acordarão, uns para a vida eterna,
outros para a ignomínia, para a reprovação eterna.
DANIEL
(XII 1-3)
Segundo
as lendas e as crenças o vampiro seria uma criatura da noite, um não
morto absorvendo a vitalidade dos vivos para escapar ao túmulo.
Construiria dessa forma uma espécie de imortalidade mágica na
região das trevas, que separam a vida da morte.
Os
vampiros existiram?
Processos
verbais e crônicas do século XVIII são explícitos. No decorrer de
certas exumações, sob o controlo das autoridades locais,
desenterraram-se cadáveres em perfeito estado de conservação: «O
corpo não libertava qualquer cheiro, tinha sim, pelo contrário,
mantido o seu estado de frescura sem que apresentam-se o mínimo
sinal de decomposição. O sangue que saía da boca do cadáver era
tão fresco como se de uma pessoa sã se tratasse. O cabelo, a barba
e as unhas tinham crescido e a pele começava a separar-se do corpo,
enquanto uma nova se formava. O rosto, as mãos, os pés, estavam
igualmente conservados.» (Asfeld, 1730.)
Na
maior parte dos casos; neste tipo de sepulturas (contrastando com as
outras) registram-se tenebrosas vibrações. Fazem-se na aldeia o
levantamento de muitas e misteriosas mortes, ocorridas na proximidade
do cemitério. Animais degolados, homens e mulheres exangues,
crianças mortas por debilidade e outros tantos casos de
enlouquecimento.
Os
agentes da polícia e os religiosos encarregados de fazer o inquérito
dirigiram-se por fim ao cemitério, como era inevitável!
Os
túmulos são abertos e o coração do cadáver é trespassado com o
auxílio de uma estaca, a cabeça cortada à machadada e o caixão
cheio de cal viva. Processos verbais, são redigidos e assinados
pelos oficiais do rei e autenticados pelas autoridades locais.
Em
1776, D. Agustin Calmet, padre beneditino e abade de Senóvia,
redigiu o seu Tratado sobre as aparições dos espíritos,
reencarnações, anjos, demônios, e vampiros da Silésia e da
Morávia, dedicado ao príncipe Carlos de Lorena, Bispo d’Olmütz.
Relata-nos
ele: «Citam-se e ouvem-se testemunhas, examinam-se situações,
observam-se os corpos exumados procurando sinais vulgares, como a
mobilidade, a flexibilidade dos membros, a fluidez do sangue, a
incorruptibilidade do corpo. Se tais pormenores forem na verdade
observados concluir-se-á que são eles quem molesta os vivos, pelo
que são entregues ao carrasco a fim de que ele os queime.» E mais
adiante, adverte do perigo que paira: «Este mal que espalha o
terror, castiga particularmente a Hungria, a Polônia, a Silésia, a
Morávia, a Áustria e a Lorena. Quem de- le nos livrará, pois não
deixará de aumentar caso não se puser cobro a tal situação?»
E
conclui por fim: «No meio de tudo isto, não vejo senão trevas e
dificuldades, cuja solução deixo aos mais hábeis e ousados.»
Superstições,
alucinações, lendas ou presenças autênticas vindas de além
túmulo? A caça está aberta...
Quando
se estuda o vampirismo pode dizer':"se que se trata de uma via
tenebrosa, de um culto da noite cuja divindade central seria o não
morto visto que o vampiro cultiva a sua personalidade demoníaca. Ele
ama o seu próprio corpo e tenta, por todos os meios mágicos, evitar
a sua desintegração.
Os
adeptos deste culto mudam de nome segundo as regiões, os dialetos,
os costumes. O jesuíta Gabriel Rzazcynsi explica em 1 721: «Há
mortos que mesmo no túmulo conservam a avidez de devorar e que, à
boa maneira dos espectros, fazem as suas vítimas pela vizinhança;
os polacos dão-Ihe o nome especial de Upiers e Upiercza. A Europa
central foi, durante muito tempo, o feudo destes senhores da.noite,
capazes de interromper o processo de decomposição do corpo,
suspensos entre a vida e a morte nessas zonas de obscuridade que as
antigas religiões povoavam de diabos, de demônios.
Nas
províncias da Alemanha, em Hasse, Wurtenberg, Brunswick, afirmava-se
que o cadáver-vampiro, uma vez saído do caixão, tinha o poder de
se transformar em ave noturna e voar durante a noite à procura das
suas vítimas.
Mais
perto de nós, o professor Vukanovic assinalou danos causados pelos
vampiros na Sérvia, nos anos de 1933,1940, 1947 e 1948,
principalmente na província de Kosovo-Motohija.
Em
1970, o feiticeiro inglês David Farrant foi condenado, sem apelo nem
agravo, a cinco anos de 'prisão por violação e profanação de
sepultura. E no prosseguimento de numerosos testemunhos acerca de uma
«presença» no cemitério de Highgate, no Norte de Londres, que
Farrant e os seus adeptos tentaram um ritual de invocação do
vampiro. Os jornais ingleses seguiram esta rocambolesca aventura
durante várias semanas. Falou-se no caso de um caixão arrombado, de
um cadáver decapitado por Farrant, de símbolos mágicos pintados
sobre as sepulturas, de obsessões, de pesadelos que apavoravam os
habitantes de Highgate, de animais degolados pelas veredas do
cemitério, etc.
Assim
o vampirismo, que tem como figura principal a sombria e arrogante
figura do famoso príncipe Drácula – embora estejamos longe das
epidemias vampirescas dos séculos XVIII e XIX –faz sempre os seus
discípulos. Propõe um método para vencer a morte, utilizando o
fascínio e o desejo, jogando com o medo e a obsessão. E uma espécie
de espiritualidade contraditória que procura evitar a decomposição
do corpo, mantendo os instintos e os impulsos selvagens do homem para
além túmulo. O oposto às espiritualidades libertadoras que partem
as amarras e comunicam ao homem o sentimento de eternidade, a união
com Deus.
A
magia negra do vampiro permitiria obter uma eternidade fictícia, uma
espécie de estado letárgico intermediário. O vampirismo seria uma
doença da alma.
Para
Siméon le Nouveau Théologien – eremita do século X – só a
perfeição espiritual permite vencer o túmulo e libertar-se do
tempo e da morte, escreve ele nos seus Capítulos Teológicos: «Morre
sem na verdade morrer todo aquele que atingir a perfeição, porque
viva em Deus, ao qual está unido, como que tendo deixado de viver em
si próprio.»
Na
outra extremidade, Stanislas de Guaita, esoterista e mestre da Ordem
Cabalística de Rosa-Cruz, declara: «Proceder aos ri tos
sanguinários num túmulo entreaberto, agrava talvez a situação: é
sugerir à alma embaraçada ainda nas peias magnéticas do cadáver a
tentação de se manter assim, é estender-lhe o cálice do
abominável vampirismo.»
As
leis do sangue
O
vampirismo está sempre associado a um drama, uma maldição, uma
doença psíquica hereditária. Na epopéia negra e vermelha dos
vampiros apareciam casais amaldiçoados, homicidas megalômanos tais
como o príncipe VIad Drakul, grandes famílias atingidas por um mal
misterioso, como os Bathory ou os Cillei na Romênia do século XV.
Todos
eles fascinados por uma espécie de vontade mórbida, rapidamente
transformada em neurose, em obsessão. Cultivam desejos dos mais
perturbadores, tais como Bárbara Cillei e seu irmão partilhando da
mesma cama ou VIad Drakul empalando os seus prisioneiros e fazendo-se
servir de faustosas refeições, entre cadáveres suspensos de lanças
e piques.
Vive-se
febril e loucamente a sexualidade e a morte. O leito nupcial torna-se
fúnebre pelas maldições e juramentos terríveis nele feitos.
«Voltarei!...» Uiva Bárbara Cillei antes de morrer. Herman, seu
irmão, invocará os demônios da antiga magia para que a irmã
ressuscite. As crônicas romenas da região da Transilvânia afirmam
que o êxito teria sido completo. Bárbara Cillei saiu do túmulo
visitando o castelo de Varazdin, onde tem a sua sepultura.
Coincidências ou epidemias diabólicas? Em 1936, na aldeia de
Kneginecc – perto de Varazdin – várias pessoas novas,
rapariguitas, pereceram de maneira estranha. «Algumas morreram em
poucas semanas, em dois ou três meses no máximo, sem se lhes
conhecer qualquer doença. Todas tinham sobre a garganta duas ou três
manchas azuladas. Muitos destes jovens acordavam durante a noite
atormentados por horríveis pesadelos.»
O
ritual do exorcismo praticou-se nas ruínas de Varazdin por um
sacerdote ortodoxo da igreja do Oriente. Rapidamente pararam as
manifestações. Dizem os velhos de Kneginec que o Grande Exorcista
libertou a aldeia, mas ninguém esclarece se os restos mortais de
Bárbara Cillei, morta no século XV, foram ou não exumados.
Os
processos verbais que relatam os fenômenos vampirescos
demonstram-nos através de que mecanismos o não morto se propaga e
contamina quantos leiam. Citemos por exemplo o inquérito conduzido
pelo tenente Buttner, do regimento de Alexandre de Vurtemberga, a 7
de Janeiro de 1732, o Visum et Repertum, que intrigou Luís XV e o
duque de Richelieu:
«Tendo
ouvido dizer por mais de uma vez que na aldeia de Medwegga, na
Sérvia, os pretensos vampiros provocavam a morte de muita gente
sugando-lhes o sangue, recebi a ordem e missão, através do comando
superior de Sua Majestade, para que o caso fosse esclarecido
beneficiando, para questão de inquérito, do apoio de oficiais e de
dois Unterfeldscherer.
»Perante
o capitão da Companhia de Heiduques Gorschitz, Heiduck, Burjaktar e
os outros heiduques mais antigos do local, examinamos os fatos.
Estes, logo que interrogados, nos relataram unanimemente um caso
ocorrido, havia cinco anos, com um heiduque da região (um heiduque é
um membro da nobreza local) chamado Arnold Paul que ao cair do carro
de feno partira o pescoço. Mais tarde, passados alguns anos, teria
contado repetidas vezes ter sido vítima de um vampiro, perto de
Casanova, na Pérsia turca.
»Teria
por esse fato resolvido comer alguma terra no túmulo de um vampiro,
esfregando-se com o sangue do mesmo, uma vez ser voz corrente evitar
assim a maléfica influência. Todavia, vinte ou trinta dias após a
sua morte havia gente a queixar-se que Arnold Paul os atormentava,
chegando mesmo a matar quatro pessoas. Para que se acabasse com este
perigo, o heiduque aconselhou os habitantes dessa região a
desenterrarem o vampiro e assim foi, quarenta dias depois da morte
deste. Encontraram-no em perfeito estado de conservação; a carne
não decomposta, os olhos injetados de sangue fresco que também
escorria do nariz e dos ouvidos, sujando-lhe a camisa e a mortalha.
As unhas das mãos e pés estavam soltas, e novas unhas cresciam em
seu lugar, pelo que se concluiu tratar-se de um arqui-vampiro. Assim,
segundo a norma do sítio, atravessaram-lhe o coração com uma
estaca.
»Mas
enquanto se procedia a esta ação, jorrou do corpo uma enorme
quantidade de sangue, acompanhada de um lancinante grito. Nesse
próprio dia foi queimado, e as cinzas lançadas ao túmulo. Aquela
gente afirmava que as vítimas dos vampiros transformam-se, por sua
vez, em vampiros. Por tal razão se decidiu proceder da mesma forma
para com os quatro corpos atrás referidos.
»O
caso não ficou por aqui porque o dito Arnold Paul atacara não só
pessoas mas também gado!
»Aqueles
que diziam ter comido carne de animal contaminado e que disso vieram
a morrer ficaram presumíveis vampiros, tanto que no espaço de três
meses, (em dois ou três dias) sem nenhuma doença previamente
detectada, pereceram dezessete pessoas das idades mais diversas.
»Heiduque
Joika faz saber que a sua nora, Staha Joica, tendo-se deitado quinze
dias antes de perfeita saúde, soltou durante a noite um grito
medonho, acordou em sobressalto tremendo de medo, queixando-se de ter
sido ferida no pescoço por um homem, filho do heiduque Milloe, que
morrera havia quatro semanas. Desde então definhando hora a hora,
morria oito dias depois.
»Por
todas estas coisas nessa mesma tarde, depois de ouvidas as
testemunhas, fomos ao cemitério acompanhados pelo heiduque da
aldeia, para que se abrissem os túmulos suspeitos e se observassem
os corpos.
»Esta
investigação revelou os seguintes fatos:
»–
Uma mulher de nome Stana, ao dar um filho à luz e no seguimento de
uma curta doença de três dias, morreu aos 20 anos e 3 dias
confessando que, para se livrar de toda a espécie de influências,
se esfregara com sangue de vampiro. O seu estado de conservação era
excelente. Aberto o corpo descobriu-se uma grande quantidade de
sangue fresco na cavitate pectoris.
»–
Miliza, uma mulher com 60 anos que morreu após três meses de doença
e enterrada noventa e tal dias depois, tinha ainda uma quantidade de
sangue em estado líquido.
»–
Os oficiais do rei enumeram ainda onze pessoas da mesma aldeia,
mortas em circunstâncias estranhas mantendo sangue fresco e concluem
a seguir, no seu relatório: ‘Depois de devidamente registrado o
que atrás foi exposto, ordenamos à ciganagem que passava que
decapitassem todos esses vampiros. Foram queimados os corpos e
espalhadas as cinzas por Morávia, enquanto, devolviam aos caixões,
os corpos encontrados em estado de decomposição.’ EU AFIRMO e os
Unterfeldscherer, QUE TODAS AS COISAS SE PASSARAM TAL COMO ACABAMOS
DE RELATA-LAS, em Medwegya, na Sérvia, a 7 de Janeiro 1732.»
Assinatura:
os oficiais do rei... As testemunhas. Belgrado, 26 de Janeiro 1732.
O
êxtase negro
É
nesta atmosfera de caça aos vampiros que a igreja se deparou com a
mais terrífica blasfêmia: a maldição do sangue, sangue este de
que o Antigo Testamento nos fala como portador do Espírito...! E,
pois, pecado mortal por excelência: Um crime contra o Espírito!
E
no entanto, nas histórias de vampiros, a morte aceita este estado de
vida intermédio, esse sono do morto-vivo encerrado no seu caixão,
tendo o poder de vagabundear durante a noite como ave noturna que
descreve círculos concêntricos ao aproximar-se da sua presa.
E
de noite que o duplo astral do vampiro se transforma em lobo,
fogo-fátuo, morcego.
Está
ligado aos vivos por forças subterrâneas, ligações secretas que
vêm prender-se como anzóis ao sono de futuras vítimas. Na versão
de Bram Stoker – autor do Drácula – a hora do vampiro situa-se
entre a meia-noite e a uma hora da manhã, mas as invocações do
morto-vivo fazem-se ao pôr do Sol.
O
sono não protege. A consciência de quem dorme fica anestesiada, a
vontade entra em letargia e qualquer espírito malfeitor pode vir
ocupar o seu espírito deixando-lhe ficar uma imagem, um pesadelo que
manterá ao despertar sob a forma de uma obsessão.
Pela
manhã, a vítima do vampiro lembra-se de ter tido um sonho estranho
que lhe deixa um profundo cansaço, um estado de extrema debilidade.
Ela experimentou aquilo a que os exorcistas do século XVIII chamam:
a VIOLAÇAO DA ALMA.
Sintomas
de uma manifestação oculta que escapa ao túmulo, ou desequilíbrios
psicopatológicos?
Cada
um explicará o fenômeno à sua maneira, agarrando-se às suas
crenças e terrores, mas isso não modificará em nada a natureza dos
sintomas. São de tal forma características que um padre exorcista
ou os velhos aldeões que «sabem», conseguem detectar a passagem de
um vampiro.
O
estudo dos processos verbais e das aparições de vampiros nos
séculos XVIII e XIX –sobretudo na Europa central – permite-nos
abrir o dossier médico-psíquico do homem e da mulher tornados
vampiros.
Uma
mulher ainda nova que recebeu a visita noturna de um vampiro, acorda
pela manhã lembrando-se de um pesadelo vago, impreciso mas
aterrorizante. Desde logo, com as visitas noturnas o seu
comportamento vai-se sucessivamente modificando. A fraqueza e a
prostração parecem ser os primeiros sintomas. Seguidamente estará
sujeita a perdas de consciência, novos pesadelos cada noite um tanto
mais precisos, êxtases negros onde os ritmos deslizam com a lentidão
de um veneno. Porque é bem de um veneno que se trata. A vítima –
que não entrou ainda na «cadeia» dos adeptos – vive num estado
permanente de sonambulismo e súbitas entradas em transe, que
surpreende e horroriza quantos a rodeiam dada a modificação
repentina.
Acorda
de manhã, umas vezes com dores de cabeça, com enxaquecas sem
aparente razão de ser, com a sensação de pesadelos de que se não
lembra e a idéia vaga de ter dormido com um peso sobre o peito, uma
impressão de asfixia durante o sono.
Outras
vezes tem um acordar diferente. Olhos abertos e vítreos, ela
persegue ainda o pesadelo noturno, de olhar vago.
Este
torpor não durará além de alguns instantes mas o dia decorrerá
entre dois mundos, com ausências, com incompreensíveis sonolências
e, por vezes, comas com a duração de dois ou três minutos.
A
doença desenvolver-se-á rapidamente até à morte. Trágico começo
no decorrer do qual a vítima se torna «adepta» e cairá no abismo.
Ela já não poderá abandonar a cama, e a palidez é tal que nem a
febre diminuirá. Deixa de conhecer os membros da família. O sono é
cada vez mais freqüente e mais profundo, dando-lhe cada vez mais o
fácies da morte. O pulso fraco, os olhos parados. Interrogam-se
entre si os especialistas. Um deles crê tratar-se de uma «histeria
cataléptica».
Raymond
Rudorff – que explorou os «arquivos do Drácula» – descreve
maravilhosamente um dos transes vividos pela vítima do vampiro:
«Depois
de ter interpretado as mais encantadoras melodias, Adelaide atacou
temas mais violentos. Um brusco entusiasmo se apoderou dela; os olhos
começaram com um brilhar sobrenatural; empalideceu, vacilou, mas
recuperou, e de novo, batendo as teclas com vigor redobrado,
lançou-se numa série de áreas ainda mais violentas que as
primeiras.
»Estranhas
visões desfilaram diante dos meus olhos enquanto ela tocava
energicamente acordes vibrantes: tempestades em plena montanha, o
roncar de mar revolto, assembléias noturnas de bruxos, noite de
Walpurgis2[2] sobre qualquer cume descampado...
»Adelaide
tornou-se cada vez mais pálida, a música cada vez mais violenta até
que, largando um grito, Conrad se levanta num salto dizendo:
»–
Basta! Por amor de Deus!
»Tremendo
dos pés à cabeça, Conrad aproximou-se do piano enquanto Adelaide
se levantava olhando-o com ódio.
»–
Adelaide – insistiu ele –, suplico-lhe, não toque mais nada!
Você está a fazer mal a si própria!
»A
transformação que se operou nela foi espetacular. A doce e amável
rapariga já não existia. Em seu lugar, erguia-se diante de nós uma
cara lívida em fúria, transtornada por uma cólera intensa e, de
voz ríspida e fria (que me gelou o coração), vociferou: «Não
obedeço senão ao meu senhor!» Sacudida por terrível tremura, deu
alguns passos e caiu redonda aos pés de Conrad.»
Todas
as manifestações de vampirismo pertencem a estas atmosnegras. Nada
sustém esta fascinação pelo abismo, este culto do terror!
Os
poderes da noite
Desde
o despertar da humanidade que o homem vem praticando o culto do
sangue para comunicar com os espíritos secretos da natureza, para
adivinhar o enigma do universo e pôr fim à angustiante pergunta:
«como vencer a morte?»
Conta-se
que Horácio fez comparecer duas mulheres mágicas para que se
invocassem as divindades e se compreendessem as coisas do porvir:
«Primeiro dilaceram com os dentes uma pequena ovelha cujo sangue foi
preparado numa cova para que viessem ali as almas dos mortos. Em
seguida colocaram, perto, duas estátuas, uma de cera, outra de lã.
A de cera era mais pequena e subordinada da outra. Esta a seus pés,
como que suplicante, apenas esperava a morte. Ao fim de diversas
cerimônias mágicas, a imagem de cera foi derretida e consumida».
O
sangue permitia atrair os espíritos e dar-lhes um rosto, uma forma.
Lucien
de Samosate descreve os vampiros na sua Histoire Veritable. Dá-lhes
o nome de Onosceles, e afirma que estes seres se alimentam, não
apenas do esperma mas também da carne e do sangue de estranhos,
atraídos pelas suas carícias. A flor do alho não tem qualquer
poder contra os vampiros, contrariamente ao que acontece com a raiz
de malva que os obriga a, fugir, confessando os crimes que cometeram.
«À
noite», escreve ele, «chegamos a uma ilha pouco importante, toda
habitada por mulheres (pelo menos assim o pareciam) falando a língua
grega. Aproximam-se, estendem-nos as mãos e beijam-nos. Adornadas
como se fossem cortesãs, todas novas e bonitas, vestidas com túnicas
até aos calcanhares. O nome da ilha é Cabalusse, e a aldeia é
Hydamardie. Cada uma destas mulheres, como que tomando conta de nós,
conduziu-nos a sua casa e deu-nos hospitalidade. Por minha parte, um
mau pressentimento tornava-me hesitante. Com um olhar atento,
descobri ossadas e caveiras de um grande número de homens.
Apetecia-me gritar, pedir ajuda aos meus companheiros, dispormo-nos à
guerra preferindo afinal nada fazer.
Agarrei
unicamente a raiz de malva que trazia comigo, suplicando que me
livrasse dos perigos que me ameaçavam. Um instante passado, e
enquanto ela se ocupava em me servir, noto que as suas pernas não
são iguais às de outras mulheres, pois tem patas de burro.
Desembainhe a espada e, agarrando-a, acorrentei-a e obriguei-a a que
tudo me confessasse. Resistiu, mas acabou por me dizer que eram
mulheres marinhas chamadas Onoscéles, e que devoram todos os
estranhos que ali abordam. ‘Nós embriagamo-los (explica ela) para
que se deitem conosco e enquanto dormem, então, degolamo-los’.»
Ouvindo estas palavras, deixo-a ainda acorrentada e subo ao telhado
onde, com todas as minhas forças, chamo os meus companheiros. Quando
chegaram, contei-lhes tudo e mostrei as ossadas conduzindo-os junto
da minha prisioneira; eis que, transformada em água, desaparece.
Mergulho a espada ao acaso nessa água que se transformou em sangue».
O
sangue torna-se o elixir da vida, o mesmo princípio de vida e de
morte. Nada escapa à sua lei. Ele, só por si, contém as origens do
homem e do mistério da sua morte. «Os demônios impuros», escreve
Hallywell, «em Mélampronéa (1681) sentem prazer em sugar o sangue
quente dos homens e dos animais. As feiticeiras oferecem a Satanás
uma parte do sangue delas no momento da assinatura do pacto...»
Magia noturna, juramento de amor, combate, vitória... nada escapa à
lei do sangue. É ele que permite selarem-se contrato, invalidá-los,
matar, comunicar com os mortos.
»Salve,
Pai dos deuses! Clamam os padres da morte no antigo Egito. Salve vós
os sete Hacthor com os cornos sangrentos a ornamentar-vos! Salve
senhores do céu e da terra! Vinde a mim, e que o casal seja um só,
uno no mesmo túmulo, forte e incorruptível, ligado pelo sangue e
água, pelo terror e pela beleza que descerão vivos a este lugar. Se
vós não chegardes a uni-los, eles que estão prontos a receber o
vosso raio, eu Nasha, incendiarei Bousiris e queimarei Osíris.»
Os
sacerdotes do culto dos mortos não temem lançar um desafio aos
deuses supremos, blasfemar para forçar os espíritos do além a
manifestarem-se, a tomar sobre si o defunto para a sua longa viagem
noturna.
Toda
a história mágica dos homens relata a história misteriosa do
sangue, o seu poder sobre o destino do homem. O homem transporta a
obsessão do sangue através das raças e das civilizações. Podem
os homens morrer, desaparecer os impérios, que a humanidade – a
mais que velha humanidade – não esquece a presença atemorizante
do sangue, a sua presença oculta no interior do corpo, o seu
mistério. Cada molécula parece dissimular uma terrível verdade: o
próprio segredo do homem e do universo.
Neste
túmulo vivo
depositei
meu sangue
É
desta forma que os adeptos do vampirismo acreditam no supremo poder
do sangue. Afirmam que este atravessa o túmulo acordando o duplo,
que escapa à decomposição. E o túmulo torna-se a prova alquímica
onde a matéria negra trava o seu último combate, em que ela se
transforma em Maelström de energias vivas, refazendo vida a partir
das cinzas.
O
vampirismo cultivou sempre a inversão e negação dos valores
espirituais do Evangelho.
Logo
que Jesus morreu na cruz, a lança do centurião trespassou o lado e
imediatamente saiu sangue que derramou o espírito de Deus.
É
nesta fonte de vida que os cristãos virão beber, para que possam
ter o direito à ressurreição da carne e à imortalidade.
Através
do corpo imolado do Cristo, Deus expande-se e integra-se no mundo.
«Se
alguém tem sede, venha a mim! Beba quem crê em mim» declarou Jesus
no Templo, em Jerusalém.
A
Escritura anuncia: Do seu seio, correrão fontes de vida. É do lado
aberto de Cristo que procede o Espírito e se derrama sobre os
homens. No momento da Eucaristia, o sacerdote lembra as palavras de
Cristo: «Tomou o cálice e dando graças o abençoou e deu aos seus
discípulos dizendo: Tomai e bebei todos, este é o cálice do meu
sangue, da nova e eterna aliança, derramado por vós e por todos os
homens em remissão dos pecados». Assim o sangue de Cristo renova a
aliança com Deus, propaga o Espírito e destrói a morte.
A
partir dos santos mistérios, os adeptos do vampirismo construíram a
sua crença quanto à incorruptibilidade do corpo, do sangue que
renova a vida e impede a morte, sem nada purificar, conservando as
máculas e os miasmas psíquicos, os instintos da morte, o medo e o
ódio... prendendo-se ainda ao mundo dos sentidos e do prazer.
A
obsessão do vampirismo é o medo da morte e a necessidade do mundo
(apesar do túmulo), e recusar morrer e abandonar o corpo. Todas as
patologias estão ligadas para criar assim o monstro noturno, bebedor
de sangue, em rebelião contra a luz.
Na
mitologia do vampiro sabe-se que o morto-vivo teme a luz do dia
porque ela poderá destruí-lo, reduzindo-o a cinzas.
Compreende-se
assim porque se diz – no culto do vampiro – que a cruz de Cristo
o faz recuar e evita a sua saída do túmulo, pois ela simboliza a
luz de Cristo, vencedor da morte destruidora de cada parcela ou átomo
de obscuridade que transfigura e ressuscita o mundo e cujo sangue
derramado liberta o Espírito. O crucifixo não é um elemento
folclórico para filmes de vampiros. É a transfiguração face às
forças vegetativas da morte.
O
sangue do dragão
Na
Romênia do século XV, Drácula – o príncipe Vlad Drakul, senhor
de Valáquia –pertencia à Ordem do Dragão, confraria militar de
iniciação fundada por Segismundo I da Hungria. Drac – a raiz do
nome Drácula – significa Dragão, símbolo de imortalidade e de
vitória sobre a morte.
Tradicionalmente,
dragão é o guardião do sangue eterno. Para os taoístas, os
adeptos que tenham vencido o túmulo tornam-se imortais voadores e
tomam a aparência de um dragão. Na magia chinesa, as correntes de
energia que atravessam a terra são chamadas «veias de dragão». Da
mesma forma, as energias telúricas vindas do subsolo seriam o
«sangue do dragão», o poder contido nas suas «veias».
Nas
narrações mitológicas o dragão faz ninho nas entranhas da terra,
vomita fogo, guarda a entrada da caverna ao fundo da qual protege um
monstruoso tesouro. O dragão representa a força, a energia
telúrica, a atração, as forças da gravitação que prendem a
matéria e impedem a sua sublimidade.
O
fato de se ter associado o dragão às forças e espíritos
diabólicos não é uma simples superstição. Por detrás dessa
crença esconde-se a opacidade, o peso, a obscuridade. O dragão
retém a alma nos nós da matéria tal como o minério de ouro que,
sem sair do subsolo, não conhecerá a deslumbrante purificação.
Os
ascetas dos primeiros séculos da era cristã combateram muitas vezes
o diabo sob a forma de um dragão que vem tentar a alma no momento da
oração e leva-la de novo à profundidade das trevas.
«A
alma da carne está no sangue», dizem as escrituras (Levítico). «E
preciso que o dragão morra, isto é, que se destruam as forças
diabólicas, para que o sangue se liberte desta força e volte a ser
espírito. Então a alma se expandirá nas alturas, em sua
plenitude.»
Na
mitologia escandinava, Siegfried, o herói solar, bebe acidentalmente
o sangue do dragão que acaba de vencer. Desde logo compreendeu a
linguagem das aves. Ele espalha o sangue do monstro por todo o corpo,
tornando-se incorruptível. A morte já não o deterá. Ele está
coberto pelo Espírito.
O
sangue do vampiro, retido nas entranhas da terra, não tem qualquer
poder espiritual mas sim psíquico. Ele age numa zona fechada e
crepuscular, provocando a obsessão, o enfeitiçamento diabólico, a
mediunidade, o sonambulismo, o cair em transe. Enfim, todos os
sintomas de uma alma doente que desconhece a subtileza e a
purificação.
As
crenças vampirescas afirmam que o sangue esconde em si um poder
indestrutível: a energia psíquica, o fluido mental, ligados
inevitavelmente ao magnetismo da Lua.
Para
os indianos da América do Norte e do Canadá, o vampiro coloca a sua
boca, transformada em tromba, na orelha da pessoa que está a dormir
e suga-lhe o cérebro. Note-se, como a maior parte dos casos de
vampiros, que se trata de alguém entregue ao sono e, assim, à
influência da Lua.
Outras
tradições existem em que esta energia poderosa vem diretamente da
Lua (de Hécate – pensa-se – a deusa lunar a quem são
sacrificados os recém-nascidos de cujo sangue ela absorve a
vitalidade).
Nas
crenças chinesas, a família do defunto crê que a partir da
influência da Lua poderá nascer o vampiro. Então veda todas as
fendas do caixão de forma a que os raios lunares não possam aí
penetrar. Estes teriam o poder de transformar o cadáver em
«Kiang-si», o mesmo que «vampiro». Marcianos – eremita sírio
dos primeiros séculos – abandonou o deserto para se consagrar
exclusivamente à oração. Theodoret de Cyr conta a sua vitória
sobre o dragão com a ajuda da força espiritual:
«Uma
das vezes que o grande Marcianos orava no pátio de entrada, um
dragão que rastejava pela parede leste debruçava-se lá do alto e,
de goela aberta e olhar tenebroso, mostrava as suas intenções.
»Estava
presente Eusébio, que ficou assustado com tal espetáculo e,
convencido de que o seu senhor nada sabia quanto ao que se passava,
gritou para preveni-lo e conseguir que ele fugisse depressa. Porém
Marcianos rejeitou, bramindo, os temores daquele, que aliás seriam
perniciosos e, persignando-se; soprou. O dragão como que seco pelo
fogo e como que abrasado ficou feito em nada, tal como um pedaço de
palha queimado.»
A
respeito do poder espiritual de Marcianos, oposto aos poderes
psíquicos do dragão, Thódoret de Cyr revela: «Marcianos
esforçava-se por esconder o dom que possuía, mas as suas virtudes
brilhavam como um clarão e punham a nu o poder que ele escondia.»
Nas lendas da Transilvânia, vê-se um caçador de vampiros enterrar
uma estaca aguçada no coração do monstro. Logo, o sangue escorre
em borbotões e o cadáver do morto vivo cai feito em pó.
Vlad
Drakul – o Dragão – restitui à terra o sangue que ele mantinha
com ajuda do sortilégio. Então, o sangue torna-se Espírito e o
corpo libertado parte as amarras e volta ao pó.