A Wicca - uma religião do novo milênio
A Wicca - uma
religião do novo
milênio
Introdução
As formas de religiosidade alternativas
tornaram-se um tema recorrente no estudo da religião, nos últimos
anos. Diversas crenças têm conquistado um espaço cada vez maior na
sociedade, criando um amplo campo para pesquisas e um problema
potencial para os educadores que precisam lidar com a perspectiva de
um ensino religioso multifacetado e includente.
Temos concentrado nossos esforços na
pesquisa de uma vertente específica dessas novas formas religiosas,
agrupadas sobre a denominação genérica de neopaganismo. No Brasil,
em especial, essa vertente possui todas as características de uma
religião da modernidade, por tentar romper com conceitos
estabelecidos da religiosidade ocidental, basicamente cristã, por
ter crescido de forma notável nos últimos dez anos e, ainda, por
ter a Internet como uma de suas principais vias de propagação.
O neopaganismo surgiu, na realidade, na
virada do século XIX para ao século XX, na Europa. Em voga entre
setores da aristocracia inglesa, em especial com um caráter
hedonista, transformou-se, ao longo das primeiras décadas do século
XX, em uma série de seitas e sociedades herméticas, nos moldes
maçônicos e rosacrucianos, como a Ordo Templi Orientis, de
Aleisteir Crowley. Em meados da década de 1950, entretanto, surge na
Inglaterra, a partir da obra do folclorista amador Gerald B. Gardner,
a vertente do neopaganismo que vai alcançar maior popularidade e
ganhar verdadeiros contornos de religião: a Wicca.
A Wicca, comumente chamada de "bruxaria
moderna", parte do pressuposto da existência de uma "antiga
religião" praticada na Europa pré-cristã, de caráter
fortemente matrifocal, e que teria sido conservada através da
tradição oral pelos seus praticantes até os dias atuais. Nessa
perspectiva, advoga-se que as pessoas perseguidas e mortas pela Santa
Inquisição como bruxas, entre os séculos XV e XVII, seriam
sacerdotes e praticantes dessa antiga religião pagã. São os
elementos dessa antiga religião que ela busca, portanto, resgatar.
Essas alegações baseiam-se amplamente em
obras antropológicas ou folclóricas do final do século XIX e
início do século XX, como Aradia, gospel of the witches (1899), de
Charles G. Leland, The Golden Bough (1922), de Sir James Frazer e,
principalmente, The witch cult in western europe (1921), de Margareth
Murray. Embora a idéia da sobrevivência de um culto pagão através
dos tempos, da forma expressa nesses livros e em outros semelhantes,
já estivesse amplamente ultrapassada nos meios acadêmicos, no
período de surgimento da Wicca, o apelo popular de uma "religião
pagã da deusa", em contraponto à "religião cristã do
deus" foi decisivo para a multiplicação dos seus seguidores,
que logo se contavam aos milhares, tanto na Inglaterra como nos
Estados Unidos.
A partir do início da década de 1970, as
idéias da Wicca receberam acréscimos em especial do movimento
feminista e da new-age, chegando assim a uma razoável definição do
que seria a nova religião. Principalmente nos Estados Unidos,
começaram a surgir tentativas de sistematização, através de
associações e conselhos de "bruxos", e foram fundadas as
primeiras igrejas propriamente ditas.
A Wicca chega ao Brasil, de forma ainda
tímida, provavelmente em meados da década de 1980. Somente a partir
do início da década seguinte, no entanto, é que surgem no mercado
brasileiro os primeiros livros sobre o assunto, traduções de obras
populares nos Estados Unidos, de autores como Lois Bourne, Scott
Cunningham e Laurie Cabot. Apenas a partir de 1998 é que se nota uma
multiplicação de títulos e uma grande difusão da sua doutrina
como religião alternativa. Essa propagação é um fenômeno típico
da classe média, e se dá principalmente através da Internet, onde
o número de referências e sites sobre o assunto, de modestas duas
dúzias em 1998, ultrapassa hoje a casa dos 50 mil, apenas no Brasil
(DUARTE, 2003). Hoje em dia, em nosso país, existe pelo menos uma
associação registrada - a Abrawicca - com ramificações na maioria
dos estados brasileiros, e uma igreja registrada em Minas Gerais.
Essa característica de profunda difusão
através da Internet é de sumo interesse. A quantidade de
informações disponíveis e a rapidez da comunicação, aliadas a um
caráter tipicamente não dogmático da Wicca, criam uma diversidade
de opiniões e um constante debate. Na verdade, torna-se possível
acompanhar - talvez pela primeira vez de forma ampla e aberta - a
formação das bases e crenças de uma religião nascente, e o
desenvolvimento ainda incipiente de uma teologia específica.
Problematização e metodologia
Partindo dos princípios expostos, buscamos
diagnosticar em que consiste o conjunto de crenças dos adeptos da
Wicca, hoje, no Brasil. A idéia era poder determinar um certo
conjunto de crenças comuns para a maioria desses adeptos, que
pudesse ser tido como consenso, e compará-lo com a literatura
específica sobre o assunto, a fim de determinar aproximações ou
desvios. Como forma de controle, buscamos igualmente a opinião de
pessoas pertencentes a outras religiões sobre aquilo que elas
acreditam ser as crenças da Wicca.
Deve-se levar em consideração alguns
fatores específicos. Em primeiro lugar, não existe nenhum tipo de
"livro sagrado" ou "revelação" na Wicca. Dessa
maneira, as fontes que fundamentam a crença e a prática são,
exclusivamente, a literatura sobre o assunto, que consiste
basicamente em obras (na sua maior parte estrangeiras) de sacerdotes
renomados. A Wicca não possui, igualmente, uma cosmogonia ou uma
mitologia próprias, tendendo antes a interpretar de uma forma
particular as diversas cosmogonias e mitologias pagãs. Embora pela
sua própria origem anglo-irlandesa exista uma tendência a
privilegiar mitos e tradições célticas e germânicas, a única
coisa que pode ser apontada como uma fundamentação mitológica para
a Wicca é a própria alegação de ser a continuidade ou o resgate
de uma antiga religião pré-cristã.
Consideramos, então, que aquilo que pode
caracterizar e definir uma determinada religião, bem como
distingui-la de outras, é: a) sua visão específica de uma
divindade ou de um conjunto de divindades, ou mesmo a inexistência
dessa visão; b) os fundamentos histórico-mitológicos em que a
crença se baseia, e que lhe conferem um caráter de validade ou
autenticidade, baseados na tradição; c) a existência de uma
prática comum, seja ela de caráter ritualístico ou não, e d) a
existência de princípios éticos ou morais, que devam ser seguidos
por todos os fiéis ou adeptos.
No item existência de uma prática comum,
no entanto, abandonamos a idéia de determinar simplesmente uma forma
ritual específica da Wicca, uma vez que a literatura sobre o assunto
é consensual a respeito das celebrações, suas formas e
simbolismos, e ainda porque essas celebrações, sendo baseadas em
festivais sazonais, não diferem essencialmente de celebrações
semelhantes encontradas em outras religiões. Dessa forma, com
exceção de uma breve alusão que explicitaremos adiante, preferimos
nos concentrar em outro aspecto da prática, de caráter mais
polêmico: a utilização e a crença na efetividade da magia.
Para atingir nosso objetivo,
disponibilizamos na Internet um questionário composto de 17
afirmações, as quais os respondentes deveriam classificar como
falsas ou verdadeiras, de acordo com os seus conhecimentos sobre a
Wicca. Ao responder o questionário, o respondente deveria informar
sua faixa etária, sua escolaridade e sua religião, sendo que 40%
dos respondentes declararam-se wiccanos.
As afirmações propostas no questionário
foram, em parte, retiradas de livros consagrados sobre o assunto e,
outras, feitas de acordo com os conhecimentos mais atuais sobre
antropologia, mitologia comparada e história das religiões. Os
dados obtidos foram tabulados e comparados por computador, através
de um programa feito especialmente para esse fim.
A caracterização da divindade
A literatura específica consagrou a Wicca
como uma "religião da Deusa". Isso significa que existiria
uma divindade arquetípica primordial de caráter feminino, chamada
simplesmente de "Deusa" ou, mais raramente, de "Deusa-Mãe".
A Deusa gera o Deus-Consorte, que a fecunda e é sacrificado, ao
final de cada ciclo, para renascer no início do ciclo seguinte. Tais
temas - a hierogamia divina e o sacrifício do deus - são comuns a
quase todas as civilizações agrícolas, representando o ciclo anual
de plantio e colheita.
Uma figura recorrente encontrada na
literatura é, igualmente, a afirmação que "todas as deusas
são a Deusa e todos os deuses são o Deus", significando um
panteísmo que admite, a princípio, que os inúmeros deuses e deusas
dos diversos panteões podem ser encarados como visões particulares
da divindade arquetípica, onde determinados atributos são
particularizados. Apesar disso, muitos livros sobre o assunto admitem
a existência real e individual das divindades, baseando-se
principalmente na noção ocultista de "egrégora" ou
"formas de pensamento".
A parte do questionário que buscava
caracterizar o pensamento da Wicca a respeito da existência e do
caráter da divindade, ou das divindades, em que se baseia o culto,
constava de seis afirmações, a saber:
a) A Wicca é uma religião centrada no
culto a uma divindade superior feminina, a Deusa.
b) A Deusa é a divindade criadora de todas
as coisas. c) Embora criado pela Deusa, o Deus-Consorte é
equivalente a ela em importância. d) A Deusa e seu consorte, o Deus,
são apenas alegorias ou mitos ligados a fertilidade da natureza. e)
Os diversos deuses e deusas são apenas manifestações da divindade
criadora. f) Os diversos deuses e deusas possuem existência real e
independente.
Considerando-se as respostas daqueles que
declararam sua religião como sendo a Wicca, nota-se alguma
indefinição apenas em relação à afirmação ligada a idéia de
criacionismo. Mesmo assim, há uma predominância daqueles que
aceitam a idéia de uma divindade criadora, em consonância com a
idéia expressa na literatura, mesmo que de forma metafórica. Os
itens c e d foram também respondidos de acordo com o esperado, se
nos basearmos na literatura sobre o assunto, estabelecendo uma
equivalência entre as duas figuras divinas centrais do culto e
negando seu caráter alegórico ou arquetípico de representações
de fenômenos naturais.
Já a porcentagem de respostas ao item a
desvia-se de forma pronunciada ao senso comum em relação à crença
da Wicca, negando ser esta uma religião centrada no culto a uma
divindade superior feminina. De certa forma, pode-se interpretar esta
resposta como complementar àquela que admite a importância
equivalente entre Deusa e Deus. Inconsistentes com a literatura são
também as respostas aos dois últimos itens. Nega-se a máxima
citada anteriormente, que descreve os diversos deuses como aspectos
da divindade (ou das divindades) primordial e, ainda, não se
reconhece a individualidade dessas divindades.
Cotejando-se esses resultados com aqueles
apresentados pelo grupo que se declarou pertencente a outras
religiões (incluindo agnósticos e ateus), não se percebe uma
diferença marcante entre a auto-concepção dos wiccanos e a imagem
que o grupo diversificado faz desta religião. A única exceção
digna de nota refere-se, como era de se esperar, ao fato de que este
último grupo considera a Wicca uma religião centrada no culto a uma
Deusa.
Observa-se, portanto, que a crença da
Wicca considera a existência de duas divindades opostas e
complementares, equivalentes em importância. Tais divindades não
são encaradas como mitos ou alegorias que representam o caráter
cíclico das estações mas, de toda maneira, não existe um consenso
quanto a existência efetiva de deuses ou deusas, como entidades
conscientes ou independentes.
Tanto no grupo dos wiccanos quanto no grupo
de controle, esse resultado não é significativamente afetado pela
idade dos respondentes, mas nota-se uma tendência a considerar as
divindades de forma mais simbólica, conforme aumenta a escolaridade.
Fundamentação histórico-mitológica da
crença
Como indicamos anteriormente, a principal
fundamentação histórica contida na Wicca refere-se a uma pretensa
continuidade. Todos os livros sobre o assunto baseiam suas
argumentações na inquestionável existência de uma religião
pré-cristã matrifocal que seria praticada na Europa Ocidental desde
tempos neolíticos, religião esta que seria uma forma ancestral da
Wicca. Estes argumentos, logicamente, não encontram nenhum respaldo
nos atuais conhecimentos da antropologia ou da história,
principalmente por partirem de uma generalização ou uniformização
de crenças em um período em que isso seria incabível. Da mesma
forma, levando-se em consideração a cristianização da Europa a
partir da Idade Média, pode-se quando muito falar em sobrevivências
de costumes pagãos na cultura popular ou absorvidos e integrados à
crença cristã, mas não de uma sobrevivência do paganismo, muito
menos como religião organizada.
É importante ressaltar que nenhum livro
sobre o assunto apresenta a figura de Gerald B. Gardner como criador
da Wicca, mas quando muito como sistematizador. O próprio Gardner,
em suas obras, afirma estar apenas repassando conhecimentos que teria
obtido de pessoas que o haviam iniciado nos "antigos segredos".
No entanto, não é do escopo desta
pesquisa questionar tais premissas. Qualquer religião possui uma
pretensa historicidade, normalmente remontando a períodos muito
recuados no tempo, e sobre os quais poucas afirmações seguras podem
ser feitas. Buscamos apenas detectar o nível de credibilidade dessa
historização entre os praticantes e até que ponto ela pertence ao
imaginário dos não-praticantes em relação à Wicca.
As afirmações referentes à fundamentação
histórica foram as seguintes:
a) A Wicca é a "Velha Religião"
que já era praticada na Europa Ocidental pré-cristã. b) A Wicca
foi criada na década de 1950 por Gerald B. Gardner. c) As pessoas
mortas pela Inquisição, entre os séculos XV e XVII, eram
praticantes da "Antiga Religião" resgatada pela Wicca. d)
As bruxas atuais são herdeiras espirituais daquelas bruxas mortas
pela Inquisição.
A característica principal que se nota ao
examinar as respostas é a indefinição, com resultados oscilando
cerca de 3 pontos percentuais acima ou abaixo da média. Dessa
maneira, pode-se dizer que não há um consenso sobre os temas
tratados, embora a tendência geral tenha sido acompanhar aquilo que
é preconizado pela história e pela antropologia e descartar a idéia
de continuidade contida nos livros sobre o assunto.
Vale dizer que esse resultado mostra uma
significativa mudança em relação a uma pesquisa semelhante
realizada por nós há dois anos, quando a grande maioria dos
respondentes tendia a considerar a Wicca uma continuidade de antigas
tradições e a aceitar a idéia de que a perseguição à bruxaria
européia estava relacionada a uma tentativa da Igreja Católica de
combater a persistência de uma religião organizada do paganismo
(DUARTE, 2003). De forma até certo ponto surpreendente, a afirmativa
d foi a mais rejeitada (74,8%), justamente a que relaciona
diretamente os atuais praticantes da Wicca às pessoas mortas pela
Inquisição.
Ao mesmo tempo foi igualmente rejeitada,
embora com menor ênfase, a idéia de que a Wicca tenha sido criada
na década de 1950 por Gardner. Aparentemente esses resultados
mostram uma conscientização dos praticantes da Wicca a respeito das
origens de suas crenças, provavelmente devido a multiplicação dos
debates sobre o assunto nos últimos anos, muito embora ainda
persista a noção de sobrevivência ou resgate de crenças pagãs,
negando-se a contemporaneidade do surgimento da religião.
Deve-se ainda levar em consideração que
apenas entre os praticantes mais velhos surge a predominância da
idéia que a Wicca é a "Velha Religião" (52,2%), e que
apenas entre os mais jovens predomina a idéia de que as pessoas
mortas pela Inquisição seriam antigos praticantes da Wicca (54,3%).
Embora, como já apontado, as diferenças percentuais não sejam
concludentes, essas pequenas variações parecem apontar uma ligeira
tendência ao conservadorismo entre os mais velhos e a adesão à
idéias "românticas" entre os mais jovens, o que seria de
se esperar.
Não há divergência nos resultados do
grupo de controle, formado por praticantes de outras religiões,
embora neste grupo as diferenças percentuais sejam mais expressivas.
Isso parece indicar que há uma progressiva aproximação entre as
crenças da Wicca e aquilo que é comumente aceito sobre elas.
Ritos e práticas
Como exposto na metodologia desse trabalho,
ao abordar o tema ritos e práticas da Wicca, não nos prendemos
àqueles conceitos ligados unicamente aos ritos sazonais que fazem
parte de um calendário de celebrações wiccanianas, visto estes
terem um caráter mais operacional do que propriamente ligado ao
sistema de crenças, objetivo último dessa pesquisa. Todavia,
interessa-nos as questões relativas à origem desses ritos, por
estarem relacionadas com o arcabouço histórico-mitológico da
crença.
De uma forma geral, a literatura específica
sobre o assunto, seguindo a idéia de continuidade de tradições
européias pré-cristãs descreve o calendário de celebrações
wiccanianas como sendo originário das celebrações sazonais dos
celtas. Ou seja, a literatura aponta as atuais celebrações como
reproduções de ritos celtas, apesar de toda a incerteza que a
arqueologia e a história possam ter sobre a maior parte desses
ritos. Além disso, tais celebrações recebem o nome de sabás, numa
alusão direta a denominação medievo-moderna das reuniões de
bruxas, consagrada pela Inquisição.
Outro aspecto preponderante na literatura
wiccaniana é a magia, sendo poucos os livros que não consagram
capítulos inteiros ao tema e havendo diversos que dedicam-se
exclusivamente a ele. A leitura de tais livros leva a crer, na
verdade, que pelo menos algum tipo de "pensamento mágico"
é indissociável da prática da Wicca. A crença na efetividade da
magia, baseada na eficácia de determinadas substâncias, de certos
objetos e do "poder pessoal" do praticante, surge como
atributo distintivo do bruxo moderno. Há, todavia, um afastamento
sistemático dos conceitos explorados pela Magia Cerimonial,
tradicionalmente ligada aos conceitos cristãos da possibilidade de
manipulação de seres angélicos ou demoníacos. Nesse item, duas
afirmações referiam-se à historicidade dos rituais da Wicca, e
três outras à prática da magia. Eram elas3:
a) Os rituais da Wicca reproduzem os
antigos rituais celtas. b) Os rituais da Wicca são frutos da mistura
de técnicas de magia cerimonial e ritos sazonais, muitos dos quais
presentes em várias outras religiões, inclusive o cristianismo. c)
A prática da Wicca é indissociável da prática da magia. d) A
magia funciona pela ação conjunta do poder do praticante, da
interferência das divindades e/ou elementais e dos objetos
utilizados (ervas, velas, incensos, etc.). e) A magia é uma forma de
sugestão, apenas, do praticante ou de terceiros.
Em relação às afirmações que se
referem aos rituais da Wicca, as respostas indicam novamente uma
aproximação do conhecimento histórico e, consequentemente, um
repúdio ao que é consagrado pela literatura específica. Em
proporções praticamente idênticas, tanto wiccanos quanto
praticantes de outras religiões admitem que a celebração de ritos
sazonais, diretamente ligados ao ciclo de plantio e colheita, como é
o caso dos rituais da Wicca, são basicamente universais, e não
característicos ou exclusivos de um determinado povo. Como era
esperado, esta tendência acentua-se entre praticantes e
não-praticantes de maior nível de escolaridade.
Por outro lado, as afirmações relativas à
magia constituíram-se nas maiores unanimidades da pesquisa,
independentemente de idade, escolaridade ou crença. Porcentagens
sempre maiores do que 65% e por vezes superiores a 90%, dependendo da
faixa enfocada, rejeitaram a idéia de magia como uma forma de
sugestão ou auto-sugestão, e a atribuíram à ação conjunta de
objetos, seres sobrenaturais e do praticante. Depreende-se deste
resultado uma crença generalizada na existência e eficácia da
magia como realidade que transcende os limites psicológicos do ser
humano, assentando-se numa supranormalidade que extrapola as
explicações científicas.
Sintomático, ainda, é verificar que a
associação entre prática da Wicca e prática da magia foi
veementemente rejeitada, exceto entre os respondentes mais velhos e
com maior nível de escolaridade. Tal resultado, por si só
surpreendente, carece de uma análise mais profunda, que não pode
ser convenientemente embasada pelos dados obtidos nessa pesquisa.
Apenas a título de conjectura, no entanto, poderíamos arriscar a
hipótese de que, entre pessoas mais velhas e com maior acesso à
informação, os desafios característicos da sociedade contemporânea
levam à busca de religiosidades alternativas que ofereçam algo de
"mágico", como uma válvula de escape às pressões do
cotidiano4.
Princípios éticos e morais
A existência de princípios éticos e
princípios morais que regulam o comportamento dos fiéis é uma
característica presente na maior parte das religiões, sendo
preponderante no cristianismo, judaísmo e islamismo e desempenhando
um importante papel em várias religiões orientais. Na Wicca, tais
preceitos reguladores de conduta estão praticamente ausentes. Na
verdade, as maiores preocupações nesse sentido encontrados na
literatura específica dizem respeito à observação de uma "ética
mágica", intrinsecamente ligada à crença na possibilidade e
na efetividade da magia.
Pode-se dizer, portanto, que os únicos
preceitos wiccanos que se referem diretamente à regras de
comportamento ético ou moral reduzem-se a dois. Um deles, geralmente
conhecido como wiccan rede - conselho wiccano - traduz-se pela
sentença "faz o que tu queres, desde que a ninguém
prejudiques". O outro, conhecido como Lei Tríplice, ou Lei do
Triplo Retorno, afirma que "tudo que fizeres a alguém voltará
a ti triplicado". A primeira afirmativa é, obviamente, uma
adaptação da máxima ocultista enunciada por Alesteir Crowley, "faz
o que tu queres é o todo da lei", presente nos seus "Livros
Sagrados" que datam do início do século XX (CROWLEY, 1998). A
outra não difere de diversas leis de retorno dos atos praticados,
encontradas em quase todas as religiões.
As afirmativas utilizadas na pesquisa,
portanto, reproduzem essas duas máximas. Foram elas:
a) Todos os praticantes da Wicca devem
seguir a máxima "faz o que tuqueres, sem a ninguém
prejudicar". b) A Lei Tríplice, que diz que tudo que uma pessoa
fizer voltará à ela triplicado, é algo a que todos os praticantes
da Wicca estão sujeitos.
Os resultados, nesse item, foram
concludentes. Em média, 81,6% dos wiccanos assinalaram tais
afirmativas como verdadeiras, e novamente observou-se um aumento
dessa porcentagem nos grupos de respondentes com mais idade ou maior
escolaridade, chegando a um máximo de 92,3% nesse último. No grupo
dos praticantes de outras religiões, houve também uma acentuada
tendência de considerar verdadeiras as afirmativas acima.
Considerações finais
Pelos resultados colhidos na presente
pesquisa, cremos ser seguro afirmar que a Wicca, no Brasil, é uma
religião em desenvolvimento, que começa a estabelecer (ou a
reformular) as suas bases doutrinárias a partir da própria opinião
dos seus praticantes, deixando paulatinamente de lado conceitos
expressos nos livros de autores consagrados, porém leigos, e
acomodando-se a conceitos que a adequam à pesquisa histórica.
Essa conclusão parece ser válida
principalmente a partir de um progressivo, mas ainda indefinido,
abandono de idéias romantizadas sobre a "Antiga Religião"
pré-cristã e sobre a ligação da bruxaria medieval com a moderna,
bem como o abandono da excessiva ênfase nas mitologias européias.
Parece estar surgindo entre os praticantes a idéia de que seus ritos
e crenças podem conter elementos, e mesmo resgatar elementos, do
paganismo típico dos povos agrícolas, mas não são uma expressão
preservada através dos tempos desses ritos e crenças.
Na questão da divindade, a crença wiccana
ainda surge nebulosa. Não parece haver entre os praticantes (e na
verdade nem entre os autores) um consenso sobre o que representam,
efetivamente, a figura da Deusa e do Deus-Consorte. A tendência é
atribuir-lhes uma transcendência ou mesmo uma concepção
figurativa, mas ainda rejeita-se a idéia de retratá-los como
simples representações dos ciclos naturais. A noção da existência
concreta da divindade, e mesmo de sua intervenção direta e
particular na vida humana, típica da cultura judaico-cristã, está
ainda fortemente presente nesse ponto particular.
Por fim, a questão da magia surge como
preponderante. Ela é não apenas uma crença generalizada como,
ainda, está relacionada diretamente aos princípios éticos e morais
aceitos como norteadores de conduta, na religião. Seria, talvez, o
caso de considerar a Wicca quase como uma "religião da magia",
o que acabaria por diferenciá-la notadamente do cristianismo, e em
especial do catolicismo, que vem deixando cada vez mais de lado seus
aspectos místicos ou misteriosos. Dessa forma, talvez possamos
encontrar aqui um dos atrativos principais dessa nova religião, uma
vez que nossos resultados apontam para uma crença disseminada na
magia, independentemente da religião.
Disseminada através da Internet, de
inúmeros títulos nas livrarias e mesmo de publicações populares
nas bancas de jornais, trazendo no conjunto das suas crenças uma
reaproximação com a natureza e com as formas mais instintivas da
religiosidade e, além disso, demonstrando a capacidade de se
reavaliar e de adaptar sua doutrina a novos tempos e novos
pensamentos, a Wicca vem ganhando um sólido espaço entre as
múltiplas religiões presentes no Brasil. Embora ainda carente de
algumas definições e bastante associada ao esoterismo, ela
constitui para o pesquisador uma rara oportunidade: assistir o
nascimento e o desenvolvimento de uma religião.