SOBRE ALUCINAÇOES E OUTRAS COISAS

Uma alucinação é um ilusão produzida por um movimento irregular da luz astral.
É, como dissemos antes, a mistura dos fenômenos do sono aos da vigília.
Nosso mediador plástico aspira e respira a luz astral ou a alma vital da terra, como nosso corpo aspira e
respira a atmosfera terrestre. Ora, do mesmo modo que em alguns lugares o ar é impuro e irrespirável,
também algumas circunstâncias fenomenais podem tornar a luz astral malsã e não assimilável.
Tal ar também pode ser muito vivo para algumas pessoas e convir perfeitamente a outras, sendo assim
também com a luz magnética.
O mediador plástico assemelha-se a uma estátua metálica permanentemente em fusão. Se o molde está
defeituoso, ela torna-se disforme; se o molde se quebra, ela foge.
O molde do mediador plástico é a força vital equilibrada e polarizada. Nosso corpo, por meio do sistema
nervoso, atrai e retém essa forma fugidia de luz especificada; mas a fadiga local ou a superexcitação parcial
do aparelho pode ocasionar disformidades fluídicas.
Essas disformidades alteram parcialmente o espelho da imaginação e ocasionam alucinações habituais
próprias aos visionários extáticos.
O mediador plástico, feito à imagem e semelhança de nosso corpo, cujos órgãos reproduz luminosamente, tem
visão, tato, audição, olfato e paladar que lhe são próprios; pode, quando está superexcitado, comunicá-los por
vibrações ao aparelho nervoso, de tal modo que a alucinação seja completa. A imaginação parece, então,
triunfar sobre a própria natureza e produz fenômenos verdadeiramente estranhos. O corpo material inundado
de fluido parece participar das qualidades fluídicas, escapa às leis da gravidade, torna-se momentaneamente
invulnerável e mesmo invisível num círculo de alucinados por contágio. Sabe-se que os convulsionários de
São Medardo deixavam-se atenazar, espancar, triturar, crucificar, sem que sentissem nenhuma dor, que se
erguiam do chão, andavam de cabeça para baixo, comiam alfinetes e os digeriam.
Achamos oportuno relatar aqui o que publicamos no jornal O Estafeta sobre os prodígios do médium
americano Home e sobre vários fenômenos da mesma ordem.
Nunca fomos, nós mesmos, testemunhas dos milagres do senhor Home, mas nossas informações vêm das
melhores fontes, recolhemo-nas numa casa onde o médium americano foi acolhido com benevolência quando
estava infeliz, e com indulgência quando chegou a tomar sua doença por uma felicidade e uma ventura. É a
casa de uma senhora nascida na Polônia, mas três vezes francesa pela nobreza de seu coração, pelos encantos
inefáveis de seu espírito e pela celebridade européia de seu nome.
A publicação dessas informações no Estafeta atraiu-nos, sem que saibamos bem por quê, as injúrias de um
senhor De Pène, conhecido, desde então, por seu duelo infeliz. Lembramo-nos, na ocasião, da fábula de La
Fontaine sobre o louco que atirava pedras num sábio. O senhor De Pène tratava-nos de "padre que abandonou
a batina" e de mau católico. Mostramo-nos pelo menos bom cristão compadecendo-nos dele e perdoando-o, e,
como é impossível ser "padre que abandonou a batina" sem nunca ter sido padre, deixamos cair por terra uma
injúria que não nos atingia.
Na semana passada, o senhor Home queria mais uma vez deixar Paris, essa Paris onde, se os próprios anjos e
demônios aparecessem sob uma forma qualquer, não passariam muito tempo por seres maravilhosos, e nada
melhor teriam a fazer senão retornar logo ao céu ou ao inferno, para escapar ao esquecimento e ao abandono
dos humanos.
O sr. Home, com ar triste e desiludido, despedia-se, então, de uma nobre dama, cuja benevolente acolhida fora
uma de suas primeiras alegrias na França. Naquele dia, como sempre, a sra. B... foi gentil com ele, e quis retê-
lo para jantar; o misterioso personagem ia aceitar, quando alguém disse que era esperado um cabalista
conhecido no mundo das ciências ocultas pela publicação de um livro intitulado Dogma e Ritual da Alta
Magia; as feições do sr. Home alteraram-se de repente, e ele declarou balbuciando e com uma visível
perturbação que não podia ficar e que a aproximação daquele professor de magia causava-lhe um insuperável
terror. Tudo o que lhe disseram para tranqüilizá-lo foi inútil. - Não julgo esse homem - dizia ele -, nem afirmo
que ele seja bom ou mau, nada sei sobre isso, mas sua atmosfera me faz mal, perto dele me sentiria sem forças
e como que sem vida.
E, depois dessa explicação, o sr. Home apressou-se a despedir-se e a sair.
Esse terror dos homens de prestígio em presença dos verdadeiros iniciados à ciência não é um fato novo nos
anais do ocultismo. Pode-se ler em Filóstrato a história da estrige que treme ao ouvir chegar Apolônio de
Tiana. Nosso admirável escritor Alexandre Dumas dramatizou essa lenda mágica no belo resumo de todas as
lendas que serviria de prólogo à sua grande epopéia romanesca do Judeu Errante. A cena passa-se em
Corinto; é uma cerimônia de casamento antiga com belas crianças coroadas de flores que carregam archotes
nupciais e cantam epitalâmios graciosos e ornados de voluptuosas imagens como as poesias de Catulo. A
noiva está linda, em suas castas vestes, como a Polímnia antiga; está amorosa e deliciosamente provocante em
seu pudor, como uma Vênus de Corrégio ou uma Graça de Cânova. Aquele que ela desposa é Clínias, um
discípulo do célebre Apolônio de Tiana. O mestre prometeu vir às núpcias de seu discípulo, mas não vem, e a
bela noiva respira mais aliviada, pois teme Apolônio. No entanto, o dia não acabou. É chegada a hora do leito
nupcial, e de repente Méroe treme, empalidece, olha fixamente em direção à porta, estende a mão aterrorizada
e diz numa voz sufocada: "Ei-lo! é ele!" É Apolônio de fato. Eis o mago, eis o mestre: a hora dos
encantamentos passou, os prestígios caem diante da verdadeira ciência. Procura-se a bela noiva, a branca
Méroe, e vê-se apenas uma velha mulher, a bruxa Canídie, a devoradora de criancinhas. Clínias está
desiludido, agradece seu mestre; está salvo.
O vulgo sempre se enganou sobre a magia, e confunde os adeptos com os encantadores. A verdadeira magia,
isto é, a ciência tradicional, dos magos, é inimiga mortal dos encantamentos; ela impede ou faz cessar os
falsos milagres, hostis à luz e fascinadores de um pequeno número de testemunhas preparadas ou crédulos. A
desordem aparente nas leis da natureza é uma mentira; não é, pois, uma maravilha. A maravilha verdadeira, o
verdadeiro prodígio sempre resplandecente aos olhos de todos é a harmonia sempre constante dos efeitos e
das causas; são os esplendores da ordem eterna!
Não saberíamos dizer se Cagliostro teria feito milagres diante de Swedenborg, mas teria certamente temido a
presença de Paracelso e de Henri Khunrath, se esses dois grandes homens tivessem sido seus contemporâneos.
Longe de nós, no entanto, a idéia de denunciar o sr. Home como um bruxo de baixa categoria, isto é, um
charlatão. O célebre médium americano é doce e ingênuo como uma criança. É um pobre ser muito sensitivo,
sem intriga e sem defesa; é o joguete de uma força terrível que ele ignora, e ele próprio é certamente a
primeira de suas vítimas.
O estudo dos estranhos fenômenos que se produzem em torno desse moço é da maior importância. Trata-se de
rever seriamente as denegações demasiado levianas do século XVIII, e de abrir diante da ciência e da razão
horizontes menos estreitos que os da crítica burguesa, que nega tudo o que ainda não pode explicar. Os fatos
são inexoráveis, e a verdadeira boa fé nunca deve recear examiná-los.
A explicação desses fatos que todas as tradições obstinam-se em afirmar e que se reproduzem diante de nós
com uma incômoda publicidade, essa explicação, antiga como os próprios fatos, rigorosa como a matemática,
mas pela primeira vez tirada das sombras onde a escondiam os hierofantes de todas as idades, seria um grande
evento científico, se pudesse obter bastante luz e publicidade. Vamos talvez preparar esse evento, pois não
nos seria permitido a esperança audaciosa de concluí-lo.
Em primeiro lugar, eis os fatos em toda sua singularidade. Comprovamo-os e vamos restabelecê-los com uma
rigorosa exatidão abstendo-nos, inicialmente, de qualquer explicação ou comentário.
O sr. Home está sujeito a êxtases que o põem, segundo ele, em contato diretamente com a alma de sua mãe, e,
pela intermediação desta, com todo o mundo dos espíritos. Descreve, como os sonâmbulos de Cahagnet,
pessoas que nunca viu e que são reconhecidas pelos que as evocam; vos dirá mesmo seus nomes e responderá
de sua parte a perguntas que só podem ser compreendidas por elas e por vós mesmos.
Quando ele está num apartamento, ruídos inexplicáveis fazem-se ouvir. Batidas violentas ecoam nos móveis e
nas paredes; algumas vezes as portas e as janelas abrem-se como se fossem impelidas por uma tempestade;
fora, chega-se a ouvir o vento e a chuva; ao sair, o céu está sem nuvens, e não se sente nem o mais leve sopro
de vento.
Os móveis são erguidos e deslocados sem que ninguém os toque.
Lápis escrevem sozinhos. A caligrafia é a do sr. Home, e cometem os mesmos erros que ele.
As pessoas presentes sentem-se tocar e agarrar por mãos invisíveis. Esses contatos, que parecem escolher as
damas, carecem de seriedade, e por vezes mesmo de conveniência, em sua aplicação. Pensamos que nos
compreendem o suficiente.
Mãos visíveis e tangíveis saem ou parecem sair das mesas, mas para isso é preciso que as mesas estejam
cobertas. São necessários alguns preparativos ao agente invisível, assim como aos mais hábeis sucessores de
Robert Houdin.
Essas mãos mostram-se sobretudo na escuridão; são quentes e fosforescentes ou frias e negras. Escrevem
tolices ou tocam piano; e quando tocam piano é preciso vir o afinador, pois seu contado é sempre fatal à
afinação do instrumento.
Um dos mais recomendáveis personagens da Inglaterra, sir Edward Bulwer Lytton, viu e tocou essas mãos;
lemos a declaração escrita e assinada por ele. Declara mesmo tê-las apertado e puxado para si com toda a
força, para fazer saírem do seu esconderijo os braços a que naturalmente elas deviam estar ligadas. Mas a
coisa invisível foi mais forte do que o romancista inglês, e as mãos escaparam-lhe.
Um fidalgo russo, que foi o protetor do senhor Home e cujo caráter e boa fé não poderiam ser alvo de
nenhuma dúvida, o conde A.B... também viu e apertou vigorosamente as mãos misteriosas. Eram, disse ele,
formas perfeitas de mãos humanas, quentes e vivas; só que não se sentiam os ossos. Cerradas num aperto
inevitável, as mãos não lutaram para escapar, mas diminuíram, fundiram-se de algum modo, e o conde acabou
por nada mais segurar.
Outras pessoas que viram e tocaram essas mãos dizem que os dedos são inchados e rígidos, e comparam-nos a
luvas de borracha cheias de um ar fosforescente e quente. Por vezes, no lugar de mãos, são pés que se exibem,
todavia, nunca a descoberto. O espírito, a quem provavelmente faltam sapatos, respeita ao menos nisso a
delicadeza das damas, e nunca mostra seu pé a não ser sob um cortinado ou uma toalha.
A aparição desses pés cansa e assusta muito o senhor Home. Ele procura então aproximar-se de alguma
pessoa saudável, agarra-a como se temesse afogar-se; e a pessoa assim agarrada pelo médium sente-se de
repente num estado singular de esgotamento e debilidade.
Um fidalgo polonês, que assistia a uma das sessões do senhor Home, colocara no chão entre seus pés um lápis
sobre um papel, e pedira um sinal da presença do espírito. Durante alguns instantes nada se moveu. De
repente, o lápis foi lançado ao outro extremo do apartamento. O fidalgo abaixou-se, pegou o papel e viu aí
três signos cabalísticos que ninguém compreendia. Só o senhor Home, ao vê-los, pareceu experimentar uma
grande contrariedade e manifestou um certo temor; porém recusou-se a explicar a natureza e a significação
desses caracteres. Guardaram-nos, então, e trouxeram-nos para este professor de magia, cuja aproximação o
médium tanto receara. Examinamo-os e aqui está sua minuciosa descrição.
Estavam desenhados com força e o lápis quase rasgara o papel.
Estavam espalhados na folha sem ordem e sem alinhamento.
O primeiro era o signo que os iniciados egípcios geralmente colocavam na mão de Tífon. Um tau com duplo
traço vertical aberto em forma de compasso, uma cruz com alça tendo no alto um círculo, abaixo do círculo
um duplo traço horizontal, sob o duplo traço horizontal um duplo traço oblíquo em forma de V invertido.
O segundo caráter representava uma cruz de grande hierofante com as três travessas hierárquicas. Esse
símbolo, que remonta à mais alta Antigüidade, é ainda o atributo de nossos soberanos pontífices e arremata a
extremidade superior de seu bastão pastoral. Mas o signo traçado pelo lápis tinha de particular que o ramo
superior, a cabeça da cruz, era duplo e formava ainda o terrível V tifoniano, o signo do antagonismo e da
separação, o símbolo do ódio e do combate eterno.
O terceiro caráter era o que os maçons denominam cruz filosófica, uma cruz de quatro ramos iguais com um
ponto em cada um dos ângulos. Porém, em vez de quatro pontos, havia somente dois, colocados nos dois
ângulos da direita, ainda um signo de luta, de separação e de negação.
O professor, que nos será permitido distinguir aqui do narrador e nomear na terceira pessoa, para não cansar
nossos leitores parecendo falar-lhes de nós, o professor, pois, mestre Eliphas Levi, deu às pessoas reunidas na
sala da senhora B... a explicação científica das três assinaturas, e eis o que ele disse:
"Estes três signos pertencem à série dos hieróglifos sagrados e primitivos conhecidos somente pelos iniciados
da primeira ordem, o primeiro é a assinatura de Tífon. Ele exprime a blasfêmia desse espírito do mal
estabelecendo o dualismo no princípio criador. Pois a cruz com alça de Osíris é um linga invertido, e
representa a força paterna e ativa de Deus (a linha vertical saindo do círculo) fecundando a natureza passiva (a
linha horizontal). Dobrar a linha vertical é afirmar que a natureza tem dois pais; é colocar o adultério no lugar
da maternidade divina, é afirmar, ao invés do primeiro princípio inteligente, a fatalidade cega que tem por
resultado o conflito eterno das aparências no nada; é, pois, o mais antigo, o mais autêntico e o mais terrível de
todos os estigmas do inferno. Significa o deus ateu, é a assinatura de Satã.
"Essa primeira assinatura é hierática e refere-se aos caracteres ocultos do mundo divino.
"A segunda pertence aos hieróglifos filosóficos, representa a medida ascensional da idéia e a extensão
progressiva da forma.
"É um triplo tau invertido, é o pensamento humano afirmando alternativamente o absoluto nos três mundos, e
esse absoluto termina aqui por um forcado, ou seja, pelo signo da dúvida e do antagonismo. De tal modo que,
se o primeiro caráter queria dizer: Não existe Deus, este tem por significação rigorosa: A verdade hierárquica
não existe.
"O terceiro, ou a cruz filosófica, foi em todas as iniciações o símbolo da natureza e de suas quatro formas
elementares, os quatro pontos representam as quatro letras indizíveis e incomunicáveis do tetragrama oculto,
esta fórmula eterna do grande arcano G.’. A.’.
"Os dois pontos da direita representam a força, os da esquerda figuram o amor, e as quatro letras devem ser
lidas da direita para a esquerda começando pelo alto à direita, e indo daí para a letra embaixo à esquerda, e
assim para as outras fazendo a cruz de Santo André.
"A supressão dos dois pontos da esquerda exprime, pois, a negação da cruz, a negação da misericórdia e do
amor.
"A afirmação do reino absoluto da força, e de seu antagonismo eterno, de alto a baixo e de baixo ao alto.
"A glorificação da tirania e da revolta.
"O signo hieroglífico do vício imundo, que se teve ou não razão de reprovar aos Templários, é o signo da
desordem e do desespero eternos."
Tais são, portanto, as primeiras revelações da ciência oculta dos magos sobre esses fenômenos de
manifestações sobrenaturais. Agora, seja-nos permitido relacionar essas assinaturas estranhas a outras
aparições contemporâneas de escrituras fenomenais, pois é um verdadeiro processo que a ciência deve instruir
antes de levá-lo ao tribunal da razão pública. É preciso, pois, não desprezar nenhuma averiguação e nenhum
indício.
Nas proximidades de Caen, em Tilly-sur-Seulles, uma série de fatos inexplicáveis produziam-se, havia alguns
anos, sob a influência de um médium ou de um extático chamado Eugène Vintras.
Algumas circunstâncias ridículas e um processo fraudulento logo fizeram cair no esquecimento e mesmo no
desprezo esse taumaturgo, atacado aliás com violência em panfletos cujos autores eram antigos admiradores
de sua doutrina, pois o médium Vintras também dogmatiza. No entanto, uma coisa é notável nas invectivas de
que ele é alvo: é que seus adversários, mesmo esforçando-se em condená-lo, reconhecem a verdade de seus
milagres e contentam-se em atribuí-los ao demônio.
Quais são, pois, os milagres tão autênticos de Vintras?
Sobre esse assunto estamos melhor informados do que ninguém, como logo se notará. Autos assinados por
testemunhas honradas, artistas, médicos, padres, aliás irrepreensíveis, foram-nos comunicados; interrogamos
testemunhas oculares, e, melhor do que isto, vimos. As coisas merecem ser contadas com alguns detalhes.
Existe em Paris um escritor, no mínimo excêntrico, que se chama Madrolle. É um ancião cuja família e
relações são honradas. Escreveu primeiramente no sentido católico mais exaltado, recebeu os estímulos mais
lisonjeiros das autoridades eclesiásticas e até mesmo breves emanações da Santa Sé, depois conheceu Vintras;
e, arrastado pelo prestígio de seus milagres, tornou-se um sectário determinado e um inimigo irreconciliável
da hierarquia e do clero.
Na época em que Eliphas Levi publicava seu Dogma e Ritual da Alta Magia, recebeu uma brochura de
Madrolle que o surpreendeu. O autor sustentava abertamente os paradoxos mais inauditos no estilo
desordenado dos extáticos. Para ele, a vida bastava para a expiação dos grandes crimes, uma vez que ela era a
conseqüência de uma sentença de morte. Os piores homens, por serem os mais infelizes de todos, pareciam-
lhe oferecer a Deus uma expiação mais sublime. Enfurecia-se contra toda repressão e toda danação. "Uma
religião que condena", exclamava ele, "é uma religião condenada!" Depois pregava a licença mais absoluta
sob o pretexto de caridade, e chegava até a dizer que o ato de amor mais imperfeito e aparentemente mais
repreensível valia mais que a melhor das preces. Era o Marquês de Sade tornado pregador. Depois negava o
diabo com um entusiasmo por vezes pleno de eloqüência.
"Podeis conceber", dizia ele, "um diabo que Deus tolera, que Deus autoriza! Conceber além disso um Deus
que fez o diabo e que o deixa atormentar criaturas já tão fracas e tão prontas a se enganarem! Um Deus do
diabo enfim, secundado, preconceituoso e mal superado em suas vinganças por um diabo de Deus!..." O
restante da brochura tinha a mesma força. O professor de magia esteve a ponto de aterrorizar-se e tratou de
conseguir o endereço de Madrolle. Não foi sem alguma dificuldade que ele chegou até esse singular
panfletário, e eis a seguir mais ou menos o que foi a conversa:
Eliphas Levi: - Senhor, recebi sua brochura. Venho agradecer-lhe e testemunhar-lhe ao mesmo tempo meu
espanto e meu pesar.
Madrolle: - Seu pesar, senhor! Queira explicar-se, não estou entendendo.
- Lamento profundamente, senhor, vê-lo cometer erros que outrora eu mesmo cometi. Mas eu tinha, então,
pelo menos a desculpa da inexperiência e da juventude. Falta alcance à sua brochura porque falta-lhe medida.
Por certo sua intenção era protestar contra erros na crença, contra abusos na moral; e acontece serem a própria
crença e a moral que o senhor ataca. A exaltação que transborda em seu pequeno escrito deve mesmo causar-
lhe muito transtorno, e alguns de seus melhores amigos devem ter-se preocupado com seu estado de saúde...
- Sem dúvida! Já se disse e ainda se diz que sou louco. Mas não é de hoje que os crentes devem suportar a
loucura da cruz. Estou exaltado porque, no meu lugar, o senhor também estaria, pois é impossível permanecer
frio na presença dos prodígios.
- Oh! Oh! o senhor está falando de prodígios, isso me interessa. Vejamos, cá entre nós e de boa fé, de que
prodígios se trata?
- Ora! de que prodígios senão daqueles do grande profeta Elias, que voltou à terra sob o nome de Pierre
Michel.
- Estou ouvindo; o senhor quer dizer Eugène Vintras. Ouvi falar de suas obras. Mas ele realmente faz
milagres?
(Nesse momento, Madrolle dá um salto da cadeira, ergue os olhos e as mãos para o céu, e termina por sorrir
com uma condescendência que se assemelha a uma profunda piedade.)
- Se ele faz milagres, meu senhor! E os maiores!... Os mais surpreendentes!... Os mais incontestáveis!... Os
mais verdadeiros milagres que se tenham feito na terra desde Jesus Cristo!... Como! milhares de hóstias
aparecem sobre altares onde não havia nenhuma, o vinho brota em cálices vazios, e não é uma ilusão, é vinho,
um vinho delicioso... ouvem-se músicas celestes, exalam-se aromas do outro mundo... e finalmente sangue...
um verdadeiro sangue humano (foi examinado por médicos!), um sangue de verdade, estou dizendo, goteja e
por vezes jorra das hóstias deixando nelas caracteres misteriosos! Estou lhe dizendo o que vi, ouvi, toquei,
provei! E o senhor quer que eu permaneça frio diante de uma autoridade eclesiástica que acha mais cômodo
negar tudo do que examinar qualquer coisa...!
- Com licença, meu senhor; é sobretudo em matéria de religião que a autoridade nunca pode errar... Em
religião, o bem é a hierarquia, e o mal é a anarquia; a que se reduziria, com efeito, a influência do sacerdócio,
se o senhor coloca como princípio que é preciso acreditar no testemunho dos sentidos mais do que nas
decisões da Igreja? A Igreja não é mais visível do que todos os seus milagres? Os que vêem milagres e não
vêem a Igreja são bem mais dignos de compaixão do que os cegos, pois não lhes resta nem mesmo o recurso
de se deixarem conduzir...
- Meu senhor, sei tanto quanto o senhor essas coisas. Mas Deus não pode estar em desacordo consigo próprio.
Não pode permitir que a boa fé seja ludibriada, e a própria Igreja não poderia decidir que sou cego quando
tenho dois olhos... Ouça, eis o que se lê nas cartas de Jan Hus, quadragésima terceira carta, no final:
"Um doutor disse-me: "Em todas as coisas submeter-me-ia ao concílio, tudo então seria bom e legítimo para
mim." Acrescentou: "Se o concílio dissesse que tendes apenas um olho, embora tenhais dois, ainda assim
seria preciso dizer que o concílio tem razão." Quando o mundo inteiro, respondi, afirmasse tal coisa, enquanto
tivesse o uso da razão, não poderia concordar sem ferir minha consciência." Eu lhe direi como Jan Hus: Antes
de haver uma Igreja e concílios, há uma verdade e uma razão.
- Um momento, meu caro senhor. Antigamente o senhor era católico, não é mais; as consciências são livres.
Observarei apenas que a instituição da infalibilidade hierárquica em matéria de dogma é de modo bem diverso
racional e bem mais incontestavelmente verdadeira que todos os milagres do mundo. Aliás, o que não se deve
fazer para conservar a paz! Acredita o senhor que Jan Hus não teria sido um homem bastante superior, se
tivesse sacrificado um de seus olhos à concórdia universal, ao invés de inundar a Europa de sangue! Oh!
Senhor, que a Igreja decida quando lhe aprouver que sou caolho; só lhe peço uma graça, a de me dizer de qual
olho, para que eu possa fechá-lo e olhar através do outro, com uma ortodoxia irrepreensível!
- Confesso que não sou ortodoxo ao seu modo.
- Estou percebendo. Mas voltemos aos prodígios! O senhor os viu, tocou, sentiu, provou; mas, vejamos,
exaltações à parte, queira me contar um bem detalhado, bem circunstanciado, e que sobretudo seja
evidentemente um milagre. Estou sendo indiscreto ao lhe pedir isso?
- De modo nenhum; mas qual escolherei? Há tantos! Ouça - acrescentou Madrofle após um instante de
reflexão e com um leve tremor de emoção na voz -, o profeta está em Londres e nós estamos aqui. Pois bem!
se o senhor lhe pedisse, apenas em pensamento, que lhe enviasse imediatamente a comunhão e se, num lugar
designado pelo senhor, em sua casa, numa peça de roupa, num livro, o senhor encontrasse, ao voltar, uma
hóstia, o que diria?
- Declararia esse fato inexplicável pelos meios usuais da crítica. - Pois bem, senhor! - exclama então Madrolle
triunfante - no entanto, é isso que muitas vezes me acontece; quando quero, isto é, quando estou preparado e
quando espero ser digno! Sim, senhor, encontro a hóstia quando a peço; eu a encontro real, palpável, mas
freqüentemente decorada com pequenos corações milagrosos que se acreditaria pintados por Rafael.
Eliphas Levi, que se sentia pouco à vontade para discutir fatos a que se misturava uma espécie de profanação
das coisas mais veneradas, despediu-se do antigo escritor católico e saiu meditando sobre a estranha
influência desse Vintras, que modificara assim esta velha crença e esta velha mente de sábio.
Alguns dias depois, o cabalista Eliphas foi acordado muito cedo por um visitante desconhecido. Era um
homem de cabelos brancos, todo vestido de preto, a fisionomia de um padre extremamente devoto, de
aspecto, em suma, inteiramente respeitável.
Esse eclesiástico estava munido de uma carta de recomendação assim escrita:
"Caro Mestre,
Envio-lhe um velho sábio que deseja "arranhar" com o senhor o hebraico da bruxaria. Receba-o como eu
mesmo (quero dizer como eu mesmo o recebi), desembaraçando-se dele da melhor maneira possível.
Todo seu na sacrossanta Cabala.
Ad. Desbarolles."
- Senhor Abade - diz Eliphas sorrindo após haver lido -, estou à sua inteira disposição e nada posso recusar ao
amigo que me escreve, então o senhor esteve com meu excelente discípulo Desbarolles?
- Sim, senhor, e encontrei nele um homem muito amável e muito sábio. O senhor e ele, acredito serem dignos
da verdade que recentemente se manifestou através de surpreendentes milagres e das revelações positivas do
arcanjo São Miguel.
- O senhor nos deixa honrados. O prezado Desbarolles surpreendeu-o, então, por sua ciência?
- Oh! com certeza ele possui os segredos da quiromancia num grau bastante notável; apenas com a leitura de
minha mão contou-me quase toda minha vida.
- Ele é bem capaz disso. Mas entrou em detalhes?
- O suficiente, senhor, para convencer-me de seus conhecimentos extraordinários.
- Disse-lhe que o senhor é o antigo pároco de Mont-Louis, na diocese de Tours? Que é o discípulo mais
zeloso do extático Eugène Vintras? E que se chama Charvoz?
Tamanha reviravolta causou-lhe um choque: o velho padre, a cada uma dessas três frases, dera um salto na
cadeira. Quando ouviu seu nome empalideceu e levantou-se como se fosse impulsionado por uma mola.
- O senhor é realmente um mágico? - exclamou ele. - Charvoz é de fato meu nome, mas não é o que uso; faço-
me chamar La Paraz...
- Eu sei. La Paraz é o sobrenome de sua mãe. O senhor deixou uma posição bastante invejável: a de pároco de
um cantão e de um encantador presbitério, para compartilhar da existência agitada de um sectário...
- Diga de um grande profeta!
- Senhor, acredito inteiramente em sua boa fé. Mas vai me permitir examinar um pouco a missão e o caráter
de seu profeta.
- Pois não, senhor, o exame, o grande dia, a luz da ciência, eis o que pedimos. Venha a Londres e verá! Os
milagres são permanentes.
- Pode me dar, antes, alguns detalhes exatos e conscienciosos sobre os milagres?
- Oh! quantos quiser.
E o velho padre começou imediatamente a contar coisas que todo o mundo teria considerado impossíveis, mas
que não fizeram o professor de alta magia sequer franzir as sobrancelhas.
Coisas como por exemplo:
- Um dia, Vintras, num acesso de entusiasmo, pregava diante de seu altar heterodoxo; vinte e cinco pessoas
assistiam a esse sermão. Um cálice vazio estava sobre o altar, cálice bem conhecido pelo abade Charvoz;
trouxera-o ele próprio de sua igreja de Mont-Louis, e tinha absoluta certeza de que esse cálice sagrado não
tinha nem conduto misterioso nem fundo duplo.
"Para vos provar", diz Vintras, "que é o próprio Deus quem me inspira, ele me faz saber que o cálice vai se
encher com as gotas de seu sangue sob a aparência de vinho, e todos vós podereis saborear o produto das
vinhas do porvir, o vinho que devemos beber com o Salvador no reino de seu pai..."
- Tomado de espanto e medo - continua o abade Charvoz subo ao altar, pego o cálice, olho no fundo: estava
inteiramente vazio. Viro-o diante de todos, depois volto a me ajoelhar ao pé do altar, segurando o cálice entre
as mãos... De repente ouve-se um leve ruído, como se tivesse caído do teto uma gota de água no cálice, e uma
gota de vinho aparece no fundo. Todos os olhares voltam-se para mim, olha-se para o teto, pois nossa simples
capela estava armada num quarto pobre; no teto não havia buraco nem fenda, nada se via cair, e no entanto o
barulho da queda das gotas multiplicava-se mais rápido e mais apressado... e o vinho brotava do fundo do
cálice para a borda. Quando o cálice ficou cheio, passei-o lentamente sob os olhares da assembléia, depois o
profeta molhou aí seus lábios, e todos, um após o outro, provaram o vinho milagroso. Qualquer lembrança de
um sabor delicioso não poderia dar a idéia de seu gosto. E o que lhe direi - acrescentou o abade Charvoz - dos
prodígios de sangue que nos surpreendem todos os dias. Milhares de hóstias feridas e sangrentas refugiam-se
em nossos altares. Os estigmas sagrados aparecem diante de todos aqueles que os querem ver. As hóstias,
inicialmente brancas, marmorizam-se lentamente de caracteres e de corações ensangüentados... Deve-se
acreditar que Deus abandona aos prestígios do demônio as coisas mais santas? ou antes de mais nada é
preciso adorar e crer que é chegada a hora da suprema e última revelação?
O abade Charvoz, ao falar assim, tinha na voz aquela espécie de tremor nervoso que Eliphas Levi já observara
em Mandrolle. O mágico balançava a cabeça com um ar pensativo; depois, de repente:
- Senhor - diz ao abade -, o senhor traz consigo uma ou várias dessas hóstias. Seja gentil deixando-me vê-Ias.
- Senhor...
- Eu sei que o senhor as tem; por que tentar negar?
- Não o nego - diz o abade Charvoz -, mas o senhor me permitirá não expor às investigações da incredulidade
os objetos da mais sincera e devotada crença.
- Senhor Abade - diz gravemente Eliphas -, a incredulidade é a desconfiança de uma ignorância quase certa de
estar enganada. A ciência não é incrédula. A princípio creio em sua convicção, uma vez que o senhor aceitou
uma vida de privações e mesmo de reprovações por essa infeliz crença. Mostre-me, pois, suas hóstias
milagrosas e creia em todo o meu respeito pelos objetos de uma sincera adoração.
- Pois bem! - diz o abade Charvoz após ter ainda hesitado um pouco -, vou mostrar-lhe.
Então ele desabotoou o alto de seu colete negro e tirou um pequeno relicário de prata, diante do qual pôs-se de
joelhos com lágrimas nos olhos e preces nos lábios; Eliphas ajoelhou-se perto dele, e o abade abriu o relicário.
Havia no relicário três hóstias, uma inteira, as duas outras quase em pasta e como que amassadas com sangue.
A hóstia inteira tinha no centro um coração em relevo dos dois lados; um grumo de sangue moldado na forma
de coração, e que parecia ter-se formado na própria hóstia de modo inexplicável. O sangue não poderia ter
sido aplicado por fora, pois a coloração por embebição deixara brancas as partes aderentes à superfície
exterior. A aparência do fenômeno era a mesma dos dois lados. O mestre de magia foi tomado por um tremor
involuntário.
Essa emoção não escapou ao velho pároco que, tendo adorado mais uma vez e fechado seu relicário, tirou do
bolso um álbum e entregou-o a Eliphas sem nada dizer. Eram cópias de todos os caracteres sangrentos
observados nas hóstias desde o começo dos êxtases e dos milagres de Vintras.
Havia corações de todos os tipos, emblemas de todos os gêneros. Mas três sobretudo excitaram ao máximo a
curiosidade de Eliphas...
- Senhor Abade - diz ele a Charvoz -, conhece estes três signos?
- Não - disse ingenuamente o abade -, mas o profeta garante que são da mais alta importãncia e que sua
significação oculta deverá ser conhecida logo, isto é, no final dos tempos.
- Pois bem, senhor - diz solenemente o professor de magia - antes mesmo do fim dos tempos vou explicar-lhe:
estes três signos cabalísticos são a assinatura do diabo!
- É impossível! - exclama o velho padre.
- É isso mesmo - continuou com firmeza Eliphas.
Ora, eis que signos eram esses:
1o - A estrela do microcosmo, ou o pentagrama mágico. É a estrela de cinco pontas da maçonaria oculta, a
estrela em que Agripa desenhou a figura humana, a cabeça na ponta superior, os quatro membros nas quatro
outras. A estrela flamejante que, invertida, é o signo hieroglífico do bode da magia negra, cuja cabeça pode,
então, estar desenhada na estrela, os dois chifres no alto, à direita e à esquerda as orelhas, a barba embaixo. É
o signo do antagonismo e da fatalidade. É o bode da luxúria atacando o céu com seus chifres. É um signo
execrado mesmo no sabbat pelos iniciados de uma ordem superior.
2o - As duas serpentes herméticas, porém as cabeças e as caudas, ao invés de se juntarem em dois
semicírculos paralelos, estavam de fora, e não havia linha intermediária representando o caduceu. Acima da
cabeça das serpentes via-se o V fatal, o forcado tifoniano, o caráter do inferno. À direita e à esquerda, os
números sagrados III e VII relegados sobre a linha horizontal que representa as coisas passivas e secundárias.
O sentido do caráter, portanto, era este:
O antagonismo é eterno.
Deus é a luta das forças fatais que criam sempre destruindo.
As coisas religiosas são passivas e passageiras.
A audácia delas se serve, a guerra delas se aproveita, e é através delas que a discórdia se perpetua.
3o - Finalmente, o monograma cabalístico de Jehova, o Iod e o He, porém invertidos, o que forma, segundo os
doutores da ciência oculta, a mais terrível de todas as blasfêmias e significa, de qualquer modo que se leia:
"Só a fatalidade existe: Deus e o espírito não são. A matéria é tudo, e o espírito é apenas uma ficção dessa
mesma matéria em demência. A forma é mais que a idéia, a mulher mais que o homem, o prazer mais que o
pensamento, o vício mais que a virtude, a multidão mais que seus chefes, os filhos mais que seus pais, a
loucura mais que a razão!"
Eis o que estava escrito em caracteres de sangue nas hóstias supostamente milagrosas de Vintras!
Damos nossa palavra de honra de que todos os fatos acima enunciados são tais como os relatamos e de que
nós mesmos vimos e explicamos os caracteres, segundo a verdadeira ciência mágica e as verdadeiras chaves
da Cabala.
O discípulo de Vintras comunicou-nos também a descrição e o desenho das vestes pontificais dadas, dizia ele,
pelo próprio Jesus Cristo ao pretenso profeta durante um de seus sonos extáticos. Vintras mandou
confeccionar essas vestes e enfeita-se com elas para fazer seus milagres. São vermelhas. Ele deve trazer na
fronte uma cruz em forma de linga, ter um bastão pastoral encimado por uma mão, cujos dedos estão todos
fechados, à exceção do polegar e do auricular.
Ora, tudo isso é diabólico por excelência, e não é uma coisa verdadeiramente maravilhosa essa intuição dos
signos de uma ciência perdida? Pois foi a alta magia que, apoiando o universo sobre as duas colunas de
Hermes e de Salomão, dividiu o mundo metafísico em duas zonas intelectuais, uma branca e luminosa
encerrando as idéias positivas, a outra negra e obscura contendo as idéias negativas, e que deu à noção
sintética da primeira o nome de Deus, à síntese da outra o nome do diabo, ou de Satã.
O signo do linga trazido na fronte é, na Índia, a marca distintiva dos adoradores de Shiva, o destruidor; sendo
esse signo o do grande arcano mágico que detém o mistério da geração universal, trazê-lo sobre a fronte é
fazer profissão de impudor dogmático. Ora, dizem os orientais, no dia em que não houver mais pudor no
mundo, e este estiver abandonado à devassidão, que é estéril, logo acabará por falta de mães. O pudor é a
aceitação da maternidade.
A mão com os três grandes dedos fechados expressa a negação do ternário e a afirmação das únicas forças
naturais.
Os antigos hierofantes, como vai explicar nosso sábio e espirituoso amigo Desbarolles num belo livro, haviam
feito da mão humana o resumo da ciência mágica. O indicador, para eles, representava Júpiter; o grande dedo
ou dedo médio, Saturno; o anular, Apolo ou o Sol. Para os egípcios, o dedo médio era Ops, o indicador, Osíris
e o anular, Hórus; o polegar representava a força geradora, e o auricular, a habilidade insinuante. A mão
mostrando apenas o polegar e o auricular equivale, em língua hieroglífica sagrada, à afirmação exclusiva da
paixão e da habilidade. É a tradução abusiva e material desta grande fala de Santo Agostinho: "Amai e fazei o
que quiserdes." Comparai agora esse signo à doutrina de Madrolle: o ato de amor mais imperfeito e
aparentemente mais condenável vale mais do que a melhor das preces. E vós vos perguntareis qual força é
essa que, independentemente da vontade e da maior ou menor ciência dos homens (pois Vintras é um homem
sem letras e sem instrução), formula seus dogmas com signos enterrados nos destroços do antigo mundo,
reencontra os mistérios de Tebas e de Elêusis, e escreve-nos os mais doutos devaneios da Índia com os
alfabetos ocultos de Hermes.
Que força é essa? Eu vos direi. Mas tenho ainda muitos outros prodígios a vos contar, e este trabalho é,
digamos, como uma instrução jurídica. Devemos antes de mais nada completá-la.
No entanto, ser-nos-á permitido, antes de passar a outros relatos, transcrever aqui uma página de um
iluminado alemão, Ludwig Tieck.
"Se, por exemplo, como narra uma antiga tradição, uma parte dos anjos criados não tardou em decair, e se
foram precisamente, como é dito ainda, os mais brilhantes, pode-se depreender dessa queda apenas que eles
buscavam um caminho novo, uma outra atividade, outras ocupações e uma outra vida, ao contrário daqueles
espíritos ortodoxos, ou mais passivos, que permaneceram na região que lhes era destinada e não fizeram
nenhum uso da liberdade, seu apanágio comum. Sua queda foi essa gravidade da forma que agora chamamos
realidade, e que é a reabsorção do espírito universal nos abismos. É assim que a morte conserva e reproduz a
vida, é assim que a vida é noiva da morte... Compreendeis agora o que é Lúcifer? Não é o gênio mesmo do
antigo Prometeu, essa força que impulsiona o mundo, a vida, o próprio movimento, e que regula o curso das
forças sucessivas? Essa força, por sua resistência, equilibrou o princípio criador. Foi assim que os Eloim
criaram o mundo. Quando em seguida os homens foram colocados na terra, pelo Senhor, como espíritos
intermediários, em seu entusiasmo que os levava a investigar a natureza e suas profundezas, abandonaram-se
à influência daquele soberbo e poderoso gênio, e quando num doce enlevo precipitaram-se na morte, para aí
encontrar a vida, começaram então a existir de modo verdadeiro, natural e como convém às criaturas."
Esta página não necessita de comentário e explica o suficiente as tendências do que se denomina
espiritualismo, ou a doutrina espírita.
Há muito tempo já essa doutrina, ou essa antidoutrina, trabalha o mundo para precipitá-lo numa anarquia
universal. Porém a lei de equilíbrio nos salvará, e o grande movimento de reação já começou.
Retomemos o relato dos fenômenos.
Um operário apresentou-se um dia na casa de Eliphas Levi. Era um homem de uns cinqüenta anos, alto, de
olhar direto e que falava de modo bastante sensato. Perguntado sobre o motivo de sua visita, respondeu:
- O senhor deve saber, venho pedir-lhe e suplicar-lhe que me devolva o que perdi.
Devemos dizer, para sermos sinceros, que Eliphas nada sabia sobre esse visitante nem sobre o que ele pudesse
ter perdido. Assim, respondeu-lhe:
- Acredita-me muito mais bruxo do que na realidade sou; não sei quem é nem o que procura, portanto, se
acredita que lhe possa ser útil em alguma coisa, é necessário que se explique e esclareça o seu pedido.
- Pois bem! uma vez que não quer me compreender, reconhecerá pelo menos isso - disse então o
desconhecido, tirando do bolso um pequeno livro negro e roto.
Era o grimório do papa Honório.
Uma palavra sobre esse pequeno livro tão desacreditado.
O grimório de Honório compõe-se de uma constituição apócrifa de Honório II para a evocação e o governo
dos espíritos; e mais, de algumas receitas supersticiosas... Era o manual dos maus padres que exerciam a
magia negra durante os mais tristes períodos da Idade Média. Encontram-se aí ritos sangrentos misturados a
profanações da missa e das espécies consagradas, fórmulas de bruxaria e de malefícios, e também práticas que
só a estupidez pode admitir e a perfídia aconselhar. Enfim, é um livro completo em seu gênero; assim, tornou-
se muito raro nas livrarias, e os apreciadores fazem seu preço subir muito nos leilões.
- Meu caro senhor - disse o operário suspirando -, desde a idade de seis anos, não deixei uma única vez de
fazer meu serviço. Este livro não me deixa, e sigo rigorosamente todas as prescrições que ele contém. Por que
então os que me visitavam abandonaram-me? Eli, Eli, Lamma...
- Pare - disse Eliphas -, não parodie as mais formidáveis palavras que uma agonia já fez o mundo ouvir! Quais
são os seres que o visitavam pelo poder deste livro horrível? Conhece-os? Prometeu-lhes alguma coisa?
Assinou um pacto?
- Não - interrompeu o proprietário do grimório -, não os conheço e não assumi com eles nenhum
compromisso. Sei apenas que entre eles os chefes são bons, os intermediários alternativamente bons e maus;
os inferiores maus, mas não cegamente e sem que lhes seja possível fazer melhor. Aquele a quem evoquei e
que freqüentemente me apareceu pertence à hierarquia mais elevada, pois tinha boa aparência, era bem
vestido e sempre me dava respostas favoráveis. Mas perdi uma página do meu grimório, a primeira, a mais
importante, a que trazia a assinatura do espírito, e, desde então, não aparece mais quando o chamo. Sou um
homem perdido. Estou nu como Jó, não tenho mais força nem coragem. Oh! mestre, eu lhe suplico, o senhor a
quem a uma única palavra, a um único sinal os espíritos obedecerão, tenha piedade de mim e devolva-me o
que perdi!
- Dê-me seu grimório - disse Eliphas. - Que nome dava ao espírito que lhe aparecia?
- Chamava-o Adonai.
- Em que língua era sua assinatura?
- Ignoro, mas suponho que fosse hebraico.
- Tome - disse o professor de alta magia após haver traçado duas palavras hebraicas no começo e no final do
livro. - Eis duas assinaturas que os espíritos das trevas nunca falsificarão. Vá em paz, durma bem e não
evoque mais os fantasmas.
O operário retirou-se.
Oito dias depois voltou a procurar o homem de ciência.
- O senhor devolveu-me a esperança e a vida, minha força voltou em parte, posso, com as assinaturas que me
deu, aliviar a dor dos que sofrem e livrar os obcecados, mas ele não posso mais ver, e, enquanto não o vir de
novo, estarei triste até a morte. Antigamente, ele estava sempre perto de mim, tocava-me por vezes e
acordava-me à noite para me dizer tudo o que eu precisava saber. Mestre, eu lhe suplico, faça com que o veja
de novo.
- Quem?
- Adonai.
- Sabe quem é Adonai?
- Não, mas gostaria de revê-lo.
- Adonai é invisível.
- Eu o vi.
- Ele não tem forma.
- Eu o toquei.
- Ele é infinito.
- É mais ou menos do meu tamanho.
- Os profetas dizem que a orla de sua roupa, do Oriente ao Ocidente, varre as estrelas da manhã.
- Tinha um sobretudo muito limpo e a roupa muito branca.
- A Sagrada Escritura diz ainda que não se pode vê-lo sem morrer.
- Tinha um rosto bom e jovial.
- Mas como o senhor procedia para obter essas aparições?
- Ora! Fazia tudo o que está indicado no grande grimório.
- O quê! mesmo o sacrifício de sangue?
- Sem dúvida.
- Infeliz! mas quem era a vítima?
A essa pergunta, o operário teve um leve tremor, empalideceu, seu olhar perturbou-se.
- Mestre, o senhor sabe melhor do que eu - disse humildemente e em voz baixa. - Oh! custou-me muito;
sobretudo a primeira vez, num único golpe com a faca mágica cortar a garganta dessa criatura inocente! Uma
noite, tinha acabado de cumprir os ritos fúnebres, estava sentado dentro do círculo, na soleira interna da
minha porta, e a vítima acabava de se consumir num grande fogo feito com álamos e ciprestes... De repente,
perto de mim... vi, ou antes senti, que ele passava... Ouvi um lamento dilacerante... parecia chorar, e a partir
desse momento tinha a impressão de ouvi-lo sempre.
Eliphas levantara-se e olhava fixamente seu interlocutor. Teria diante de si um louco perigoso capaz de repetir
as atrocidades do Senhor de Retz? No entanto, a aparência desse homem era suave e honesta. Não, isso não
era possível.
- Mas enfim, essa vítima... diga-me claramente o que era. O senhor supõe que eu já saiba, e talvez saiba
mesmo, mas tenho razões para querer que me diga.
- Era, de acordo com o ritual mágico, um cabritinho de um ano, virgem e sem defeitos.
- Um cabrito de verdade?
- Sem dúvida. Acredite, não era nem um brinquedo de criança nem um animal empalhado.
Eliphas respirou.
"Ainda bem!" pensou, "este homem não é um bruxo digno da fogueira. Não sabe que os abomináveis autores
dos grimórios, quando falavam do cabrito virgem, queriam dizer uma criancinha."
- Pois bem! - disse então àquele que o consultava -, dê-me detalhes sobre essas visões. O que me conta
interessa-me muitíssimo.
O bruxo, pois é preciso chamá-lo pelo seu nome, o bruxo contou-lhe então uma série de fatos estranhos de
que duas famílias haviam sido testemunhas, e esses fatos eram precisamente idênticos aos fenômenos do
senhor Home: mãos que saíam das paredes, agitações de móveis, aparições fosforescentes. Um dia, o
temerário aprendiz de mágico ousara chamar Astaroth, e vira aparecer um monstro gigantesco que tinha o
corpo de um porco e a cabeça tirada de um colossal esqueleto de boi. Mas tudo isso era contado num tom de
verdade, com uma certeza de ter visto, que excluía qualquer dúvida sobre a boa fé e a inteira convicção do
narrador. Eliphas, que é artista em magia, encantou-se com esse achado. No século XIX, um verdadeiro bruxo
da Idade Média, um bruxo ingênuo e convicto! Um bruxo que viu Satã sob o nome de Adonai, Satã vestido
como um burguês e Astaroth sob sua verdadeira forma diabólica! que obra de arte! que tesouro de
arqueologia!
- Meu amigo - disse a seu novo discípulo -, quero ajudá-lo a encontrar o que diz ter perdido. Pegue meu livro,
observe as prescrições do ritual e venha ver-me daqui a oito dias.
Oito dias depois, nova conferência, e então o operário declarou que inventou uma máquina de salvamento da
maior importância para a marinha. A máquina está perfeitamente montada; falta apenas uma coisa... não
funciona: um defeito imperceptível está no mecanismo. Que defeito é esse? Só o espírito de malícia poderia
dizer. É, pois, absolutamente necessário evocá-lo!...
- Cuidado - disse Eliphas -; antes, diga durante nove dias esta invocação cabalística (e entregou-lhe uma folha
manuscrita). Comece esta noite, e volte amanhã para me dizer o que viu, pois esta noite o senhor terá uma
manifestação.
No dia seguinte, nosso homem não faltou ao encontro.
- Acordei de repente, mais ou menos à uma hora da manhã. Vi diante de minha cama uma grande luz, e dentro
dessa luz um braço de sombra que passava e repassava diante de mim como para magnetizar-me. Então,
tornei a dormir, e, alguns instantes depois, tendo novamente acordado, revi a mesma luz, mas ela mudara de
lugar. Passara da esquerda para a direita, e sobre o fundo luminoso distingui a silhueta de um homem que
cruzava os braços e me olhava.
- Como era esse homem?
- Aproximadamente da sua estatura e do seu peso.
- Está bem. Vá e continue a fazer o que eu lhe disse.
Passaram-se os nove dias; ao final desse tempo, nova visita do adepto; mas dessa vez muito feliz e
agradecido. Ao ver ao longe Eliphas:
- Obrigado, mestre! - exclamou -, a máquina funciona, pessoas que eu não conhecia vieram colocar à minha
disposição o capital de que necessitava para terminar meu empreendimento, reencontrei a paz do sono, e tudo
isso graças ao seu poder.
- Diga antes graças à sua fé e à sua docilidade, e agora adeus, preciso trabalhar... E então? por que este ar
suplicante, o que ainda quer de mim?
- Oh! se o senhor quisesse!...
- Se quisesse o quê? Não obteve tudo o que pediu, e até mais do que pediu, pois o senhor não havia falado em
dinheiro.
- Sim, certamente, disse o outro suspirando, mas gostaria muito de revê-lo!
- Incorrigível!
Algumas semanas depois, o professor de alta magia foi acordado mais ou menos às duas horas da manhã por
uma dor de cabeça aguda. Durante alguns instantes, receou uma congestão cerebral, levantou-se, acendeu a
lâmpada, abriu a janela, passeou pelo seu gabinete de estudos, depois, acalmado pelo ar fresco da manhã,
voltou a deitar-se e adormeceu profundamente; teve, então, um pesadelo; viu, com uma aparência terrível de
realidade, o gigante de cabeça de boi descarnada de que lhe falara o mecânico. Esse monstro perseguia-o e
lutava com ele. Quando acordou já era dia e alguém batia à sua porta. Eliphas levantou-se, jogou uma roupa
sobre o corpo e foi abrir: era o operário.
- Mestre - disse entrando apressadamente e com um ar alarmado -, como o senhor está se sentindo?
- Muito bem - respondeu Eliphas.
- Mas essa noite, às duas horas da manhã, o senhor não correu perigo?
Eliphas não sabia do que se tratava e já não se lembrava de sua indisposição da noite.
- Um perigo? não, nenhum que eu saiba.
- O senhor não foi atacado por um fantasma monstruoso que tentava estrangulá-lo? O senhor não sofreu?
Eliphas lembrou-se.
- Sim, certamente tive um começo de apoplexia e um sonho horrível. Mas como sabe disso?
Na mesma hora, uma mão invisível bateu-me com força no ombro e acordou-me em sobressalto. Sonhava,
então, que o via lutando com Astaroth. Sentei-me na cama e uma voz disse-me ao ouvido: "Levante-se e vá
em socorro de seu mestre; ele está em perigo." Levantei-me precipitadamente.
Mas, em primeiro lugar, para onde era preciso correr? Que perigo o ameaçava? Era em sua casa ou em outra
parte? A voz nada dissera sobre isso. Tomei a decisão de esperar o nascer do sol, e, desde que o dia clareou,
vim em seu auxílio, e aqui estou.
- Obrigado, meu amigo - disse-lhe o mágico estendendo-lhe a mão, Astaroth é um bufão desagradável, e essa
noite um pouco de sangue subiu-me à cabeça, apenas isto. Agora estou perfeitamente bem. Pode, portanto,
ficar tranqüilo e voltar ao trabalho.
Por mais estranhos que sejam os fatos que acabamos de contar, resta-nos revelar um drama fúnebre ainda bem
mais extraordinário.
Trata-se do fato cruento, que no início deste ano, mergulhou no luto e no estupor Paris e toda a cristandade;
fato a que ninguém suspeitou que a magia negra não fosse estranha.
Eis o que aconteceu:
Durante o inverno, no início do ano passado, um livreiro informou ao autor de Dogma e Ritual da Alta Magia
que um eclesiástico procurava seu endereço e demonstrava o maior desejo de vê-lo. Eliphas Levi não se
sentiu, de início, tomado de confiança por esse desconhecido a ponto de expor-se sem precauções à sua visita;
indicou uma casa amiga, onde deveria estar com seu fiel amigo Desbarolles. Na hora combinada e no dia
marcado, eles foram à casa da senha A..., e encontraram o eclesiástico que já há alguns instantes os esperava.
Era um moço bastante magro, de nariz pontiagudo e arqueado, de olhos azuis e ternos. Sua testa ossuda e
saliente era mais larga do que alta: a cabeça era alongada atrás, os cabelos lisos e curtos, repartidos de lado,
eram de um loiro acinzentado, pendendo para o castanho claro, mas com uma nuança particular e
desagradável. A boca era sensual e batalhadora; seus modos, aliás, eram afáveis, a voz doce e a fala algumas
vezes um pouco embaraçada. Perguntado por Eliphas Levi sobre o objetivo sua visita, respondeu que estava à
procura do grimório de Honório e que vinha informar-se com o professor de ciências ocultas sobre o modo de
se obter esse pequeno livro negro, que se tornara praticamente impossível de encontrar.
- Eu daria cem francos por um exemplar desse grimório - dizia ele.
- A obra em si nada vale - disse Eliphas. - É uma constituição, que se supõe ser de Honório II, que o senhor
talvez encontre citada por algum colecionador de constituições apócrifas; o senhor poderia procurar na
biblioteca.
- Farei isso, pois em Paris passo quase todo o meu tempo na bibliotecas públicas.
- Não está ocupado no ministério de Paris.
- Não, no momento não. Estive trabalhando durante algum tempo na paróquia São Germano de Auxerre.
- E, pelo que vejo, ocupa-se agora com pesquisas curiosas sobre as ciências ocultas.
- Não exatamente; mas persigo a realização de uma idéia... Tenho alguma coisa a fazer.
- Suponho que essa alguma coisa não seja uma operação de magia negra; sabe, como eu, senhor abade, que a
Igreja sempre condenou e ainda condena severamente tudo o que se relaciona com essas práticas proibidas.
Um pálido sorriso, marcado por uma espécie de ironia sarcástica, foi toda a resposta do abade, e a conversa
interrompeu-se.
No entanto, o quiromante Desbarolles observava atentamente a mão do padre; este percebeu e seguiu-se,
naturalmente, uma explicação, o abade então ofereceu de bom grado sua mão ao experimentador. Desbarolles
franziu as sobrancelhas e pareceu embaraçado. A mão era úmida e fria, os dedos lisos e espatulados; o monte
de Vênus, ou a parte da palma da mão que corresponde ao polegar, de um desenvolvimento bastante notável,
a linha da vida curta e interrompida, cruzes no centro da mão, estrelas no monte da Lua.
- Senhor abade - disse Desbarolles -, se o senhor não tivesse uma sólida instrução religiosa, tornar-se-ia um
perigoso sectário, pois, por um lado, é inclinado ao misticismo mais exaltado e, pelo outro, à obstinação mais
concentrada e menos comunicativa que possa existir no mundo. O senhor procura muito, mas imagina mais
ainda, e como não confia a ninguém suas imaginações elas poderiam atingir proporções que as
transformariam em suas verdadeiras inimigas. Seus hábitos são contemplativos e um pouco indolentes, mas é
uma sonolência cujos despertares podem ser dignos de temor. É levado a uma paixão que seu estado... Mas,
perdoe-me, senhor abade, receio ter ultrapassado os limites da discrição.
- Diga tudo, senhor, posso ouvir tudo e desejo tudo saber.
- Pois bem! se, como não duvido, o senhor dedica à caridade toda a atividade inquieta que as paixões do
coração lhe dariam, deve ser muitas vezes bendito por suas boas obras.
Mais uma vez o abade deu aquele sorriso duvidoso e fatal que dava ao seu pálido rosto tão singular expressão.
Levantou-se e despediu-se sem ter dito seu nome e sem que ninguém se tivesse lembrado de perguntá-lo.
Eliphas e Desbarolles reconduziram-no até a escada em respeito à sua dignidade de padre. Perto da escada,
voltou-se e disse lentamente:
- Em breve os senhores ouvirão dizer algo... Ouvirão falar de mim, acrescentou sublinhando cada palavra.
Depois saudou-os com um gesto de cabeça e com a mão, virou-se sem acrescentar uma só palavra e desceu a
escada.
Os dois amigos retomaram à casa da senhora A...
- Eis aí um singular personagem - disse Eliphas. - Pareceu-me ver Pierrot des Furnambules no papel de um
traidor. O que nos disse ao partir parece-se bastante com uma ameaça.
- O senhor intimidou-o - disse a senhora A... - Antes de sua chegada, ele começava a expor todo seu
pensamento, mas o senhor falou-lhe de consciência e das leis da Igreja, ele não ousou confessar o que queria.
- Ora essa! o que ele queria então?
- Ver o diabo.
- Pensaria, por acaso, que o trago no bolso?
- Não, mas sabe que o senhor dá aulas de cabala e de magia, esperava que o ajudasse em seus
empreendimentos. Contou-nos, à minha filha e a mim, que em seu presbitério, no campo, já fizera uma noite
uma evocação com o auxílio de um grimório vulgar. Então, disse ele, um redemoinho pareceu abalar o
presbitério, as vigas rangeram, a madeira do forro estalou, as portas balançaram-se, as janelas abriram-se com
estrondo, e ouviram-se assovios em todos os cantos da casa. Esperava, então, a visão formidável, mas nada
viu, nenhum monstro se apresentou; numa palavra, o diabo não quis aparecer. É por isso que ele procura o
grimório de Honório, pois espera encontrar aí conjurações mais fortes e ritos mais eficazes.
- Realmente! esse homem então é um monstro... ou um louco.
- Deve estar apenas ingenuamente apaixonado - disse Desbarolles. - Está tormentado por alguma paixão
absurda e não espera absolutamente nada, a menos que o diabo se intrometa.
- Mas como, então, ouviremos falar dele?
- Quem sabe? Talvez tencione seqüestar a rainha da Inglaterra ou a mãe do sultão.
A conversa parou por aí, e um ano inteiro se passou sem que nem a senhora A.... nem Desbarolles, nem
Eliphas ouvissem falar do jovem padre desconhecido.
Na noite do primeiro para o segundo dia de janeiro do ano de 1857, Eliphas Levi acordou sobressaltado com
as emoções de um sonho estranho e fúnebre. Parecia-lhe estar num quarto gótico em ruínas muito semelhante
à capela abandonada de um velho castelo. Uma porta oculta por um pano negro dava para esse quarto, atrás
do pano adivinhava-se a luz tênue e avermelhada dos círios, e parecia a Eliphas que, levado por uma
curiosidade cheia de terror, aproximava-se do pano negro... Então o pano entreabriu-se, uma mão estendeu-se
e agarrou o braço de Eliphas. Ele não viu ninguém, mas ouviu uma voz baixa que dizia em seu ouvido:
- Venha ver seu pai que vai morrer!
O magista acordou com o coração palpitante e a testa banhada de suor.
"O que quer dizer esse sonho?", pensou. "Meu pai morreu há muito tempo; por que me dizem que ele vai
morrer, e por que essa advertência perturbou meu coração?"
Na noite seguinte, o mesmo sonho voltou com as mesmas circunstâncias, e Eliphas Levi acordou mais uma
vez ouvindo repetir ao seu ouvido:
- Venha ver seu pai que vai morrer!
Essa repetição de pesadelos impressionou Eliphas penosamente: ele aceitara para 3 de janeiro um convite para
jantar em companhia alegre, escreveu para desculpar-se, achando-se pouco disposto para a alegria de um
banquete de artistas. Permaneceu, então, em seu gabinete de estudos; o tempo estava carregado; ao meio-dia,
recebeu a visita de um de seus discípulos de magia, o visconde de M... A chuva caiu, então, com tal
abundância que Eliphas ofereceu seu guarda-chuva ao visconde, que recusou-se a aceitá-lo. Seguiu-se uma
discussão de polidez, cujo resultado foi que Eliphas saiu para reconduzir o visconde. Enquanto estavam fora,
a chuva cessou, o visconde encontrou um carro, e Eliphas, ao invés de voltar para casa, atravessou
maquinalmente o Luxemburgo, saiu pelo portão que dá para a Rua do Inferno, e encontrou-se diante do
Panteão.
Uma dupla fileira de barracas improvisadas para a novena de Santa Genoveva indicava aos peregrinos o
caminho de Santo Estêvão do Monte. Eliphas, cujo coração estava triste e, por conseguinte, disposto às
orações, seguiu essa via e entrou na Igreja. Podiam ser, nesse momento, quatro horas da tarde.
A igreja estava cheia de fiéis, e o ofício realizava-se com um grande recolhimento e uma solenidade
extraordinária. Os estandartes das paróquias da cidade e do subúrbio atestavam a veneração pública por essa
virgem que salvou Paris da fome e das invasões. No fundo da igreja, o túmulo de Santa Genoveva
resplandecia de luz. Cantavam-se as ladainhas e a procissão saía do coro.
Após a cruz, acompanhada de seus acólitos e seguida pelos meninos do coro, vinha o estandarte de Santa
Genoveva; depois caminhavam em duas filas as senhoras genovevinas, vestidas de preto com um véu branco
na cabeça, uma fita azul ao pescoço e a medalha da legenda, um círio na mão encimado por uma pequena
lanterna gótica, como as que a tradição atribui às imagens da santa. Pois, nos antigos legendários, Santa
Genoveva é sempre representada com uma medalha ao pescoço, a que lhe deu São Germano de Auxerre, e
segurando um círio que o demônio esforça-se em apagar, mas que é preservado do sopro do espírito imundo
por um pequeno tabernáculo milagroso.
Após as senhoras genovevinas vinha o clero, depois, finalmente, aparecia o venerável arcebispo de Paris,
mitrado de branco, portando uma capa levantada de cada lado por dois grandes vigários; o prelado, apoiando-
se em seu báculo, caminhava lentamente e abençoava à direita e à esquerda a multidão que se ajoelhava à sua
passagem. Eliphas via o arcebispo pela primeira vez e observou os traços de seu rosto. Expressavam a
bonomia e a doçura; mas podia-se notar aí a expressão de um grande cansaço e mesmo de um sofrimento
nervoso penosamente dissimulado.
A procissão desceu até o ádrio da igreja atravessando a nave, subiu pela nave à esquerda da porta de entrada e
chegou ao túmulo de Santa Genoveva; depois voltou pela nave da direita continuando a cantar ladainhas.
Um grupo de fiéis seguia a procissão e caminhava logo atrás do arcebispo.
Eliphas misturou-se a esse grupo para atravessar mais facilmente a multidão que ia se formar novamente e
para alcançar a porta da igreja, pensativo e enternecido com essa piedosa solenidade.
A frente da procissão já tornava a entrar no coro, o arcebispo chegava à grade da nave: aí o vão era muito
estreito para que três pessoas pudessem passar de frente; o arcebispo, portanto, estava adiante e os dois
grandes vigários atrás sempre segurando as extremidades de sua capa, que encontrava-se, assim, jogada e
puxada para trás, de modo que o prelado apresentava seu peito descoberto e protegido apenas pelos bordados
cruzados da estola.
Então, os que estavam atrás do arcebispo viram-no estremecer, e ouviu-se uma interpelação feita em voz alta,
todavia sem clamor. O que fora dito? Parecia ter sido: Abaixo as deusas! mas acreditava-se ter ouvido mal,
tão deslocada e sem sentido parecia essa frase. No entanto, a exclamação repetiu-se duas ou três vezes,
alguém gritou: "Salvem o arcebispo!" outras vozes responderam: "Às armas!" A multidão dispersou-se, então,
revirando as cadeiras e as barreiras, precipitou-se para as portas gritando. Eram choros de criança, gritos de
mulheres, e Eliphas, arrastado pela multidão, foi de certo modo carregado para fora da igreja; mas os últimos
olhares que pôde lançar aí dentro depararam-se com um terrível e indelével quadro.
No meio de um círculo alargado pelo terror dos que o rodeavam, o prelado estava em pé, só, sempre apoiado
em seu báculo e sustentado pela rigidez de sua capa, que os grandes vigários haviam soltado, e que pendia
agora até o chão.
A cabeça do arcebispo estava um pouco inclinada, os olhos e a mão que não segurava o báculo estavam
erguidos para o céu. Sua atitude era a que Eugênio Delacroix deu ao Bispo de Liège assassinado por bandidos
do Javali das Ardenas; havia no seu gesto toda a epopéia do martírio, era uma aceitação e uma oferenda, uma
prece por seu povo e um perdão para o seu algoz.
A tarde caía, e a igreja começava a escurecer. O arcebispo, com os braços erguidos para o céu e iluminado por
um último raio de luz vindo dos caixilhos da nave, destacava-se contra um fundo sombrio, onde se distinguia
apenas um pedestal sem estátua em que estavam escritas estas duas palavras da paixão de Cristo: ECCE
HOMO, e mais adiante, no fundo, uma pintura apocalíptica representando os quatro flagelos prontos a
lançarem-se sobre o mundo, e os turbilhões do inferno seguindo os rastros poeirentos do cavalo pálido da
morte.
Diante do arcebispo, um braço erguido, que se desenhava na sombra como uma silhueta infernal, segurava e
brandia uma faca: soldados avançavam com a espada em punho.
E enquanto todo esse tumulto acontecia no ádrio da igreja, o canto das ladainhas continuava no coro como a
harmonia das esferas celestes perpetua-se, atenta às nossas revoluções e às nossas angústias.
Eliphas Levi fora arrastado para fora pela multidão. Saíra pela porta da direita. Quase no mesmo instante, a
porta da esquerda abria-se com violência, e um grupo furioso precipitava-se para fora da igreja.
Esse grupo girava em volta de um homem que cinqüenta braços pareciam segurar, que cem punhos estendidos
queriam socar.
Esse homem, mais tarde, queixou-se de ter sido maltratado pelos soldados; mas, tanto quanto se podia
observar nesse tumulto, os soldados protegiam-no contra a exasperada multidão.
Mulheres corriam em seu encalço gritando: Matem-no! - Mas o que ele fez? - diziam outras vozes.
- O miserável! deu um soco no arcebispo, diziam as mulheres. Depois outras pessoas saíram da igreja, e as
versões contraditórias entrecruzavam-se.
- O arcebispo teve medo e passou mal - diziam alguns.
- Ele morreu - respondiam outros.
- Viram a faca? - acrescentava um novo interlocutor.
- Era longa como um sabre, e o sangue escorria na lâmina.
Esse pobre monsenhor perdeu um de seus sapatos - observava uma velha senhora juntando as mãos.
- Não foi nada! Não foi nada! - veio anunciar, então, uma locadora de cadeiras.
- Podem voltar para a igreja: monsenhor não está ferido, acabam de declará-lo no púlpito.
A multidão, então, fez um movimento para retornar à igreja.
- Saiam! Saiam! - disse nesse mesmo instante a voz grave e desolada de um padre.
- O ofício não pode prosseguir. A igreja será fechada; está profanada.
- Como está o arcebispo? - disse então um homem.
- Senhor - respondeu o padre -, o arcebispo está morrendo, e talvez nesse momento mesmo em que falamos
ele esteja morto!
A multidão dispersou-se consternada, para ir divulgar essa funesta notícia em toda Paris.
Uma circunstância estranha envolveu Eliphas, e de certo modo desviou o seu espírito da profunda dor pelo
que acabava de acontecer.
Na hora do tumulto, uma mulher idosa e de aparência muito respeitável tomara-lhe o braço solicitando sua
proteção.
Ele achou-se no dever de responder a esse apelo, e, quando saiu da multidão com essa senhora:
- Como estou feliz - disse-lhe - por ter encontrado um homem que se aflige com esse grande crime com o qual
alegram-se, nesse momento, tantos miseráveis!
- O que diz, senhora, e como é possível existirem seres tão depravados para alegrarem-se com tamanha
infelicidade?
- Silêncio! - disse a velha senhora - talvez nos ouçam... Sim - acrescentou, abaixando a voz -, há pessoas que
estão encantadas com o que aconteceu, e olhe, ali, há poucos minutos, havia um homem de aparência sinistra,
que dizia para a multidão inquieta, quando interrogado sobre o que acabava de acontecer... Oh! não foi nada!
foi uma aranha que tombou!
- Não, a senhora deve ter ouvido mal. A multidão não teria permitido esse abominável propósito, e o homem
teria sido imediatamente preso.
- Quisera Deus que todo o mundo pensasse como o senhor - disse a dama.
Depois acrescentou:
- Recomendo-me às suas orações, pois vejo que é um homem de Deus.
- Talvez não seja a opinião de todo o mundo - respondeu Eliphas.
- E o que nos importa o mundo? - continuou a senhora com vivacidade - ele é mentiroso, caluniador, ímpio!
talvez fale mal do senhor. Não me espanto com isso, e se o senhor pudesse saber o que ele diz de mim,
compreenderia por que desprezo sua opinião.
- O mundo fala mal da senhora!
- Certamente, e o pior mal que se possa dizer.
- Como assim?
- Acusa-me de sacrilégio.
- A senhora está me assustando. E de qual sacrilégio, por favor?
- De uma indigna comédia que teria representado para enganar duas crianças na montanha da Salette.
- Quê! seria...
- Sou a senhorita Merlière.
- Ouvi falar de seu processo, senhorita, e do escândalo que provocou, mas parece-me que sua idade e sua
responsabilidade deveriam protegê-la de semelhante acusação.
- Venha ver-me, senhor, e o apresentarei a meu advogado, senhor Farre, é um homem talentoso que eu
gostaria de ganhar para Deus.
Conversando assim os dois interlocutores haviam chegado à Rua do Velho Pombal. A dama agradeceu ao seu
cavalheiro improvisado e renovou o convite para que fosse vê-Ia.
- Vou tentar - disse Eliphas. - Mas, se for, perguntarei ao porteiro pela senhorita Merlière?
- Cuidado! não me conhecem por esse nome; pergunte pela senhora Dutruck.
- Dutruck, está bem, senhora, queira aceitar meus humildes cumprimentos.
E separaram-se.
O julgamento do assassino começou, e Eliphas, ao ler nos jornais que esse homem era padre, que fizera parte
do clero de São Germano de Auxerre, que fora pároco no interior, que parecia furioso, lembrou-se do padre
pálido que um ano antes procurava o grimório de Honório. Mas a descrição que as páginas públicas davam
desse criminoso contrariava as lembranças do professor de magia. Com efeito, a maioria dos jornais
atribuíam-lhe cabelos negros... Portanto, não é ele, pensava Eliphas. No entanto, tenho ainda no ouvido e na
memória as palavras que para mim estariam agora explicadas por esse grande crime:
- Não tardarão a saber algo. Em breve ouvirão falar de mim.
O julgamento teve lugar com todas as horríveis peripécias que todos conhecem, e o acusado foi condenado à
morte.
No dia seguinte, Eliphas leu numa folha judiciária o relato dessa cena inaudita nos anais da justiça; e sentiu a
vista turvar-se quando leu o trecho em que se descrevia o acusado: "Ele é loiro".
- Deve ser ele - disse o professor de magia.
Alguns dias depois, uma pessoa que na audiência pudera traçar um esboço do perfil do condenado mostrou-o
a Eliphas.
- Deixe-me copiar este desenho - disse, tremendo de espanto.
Fez a cópia e levou-a ao seu amigo Desbarolles a quem perguntou sem maiores explicações:
- Conhece este rosto?
- Sim - assentiu vivamente Desbarolles -; espere, é o padre misterioso que vimos na casa da senhora A.... e
que queria fazer evocações mágicas.
- Pois bem, meu amigo! o senhor confirma minha triste convicção. O homem que vimos, não tornaremos mais
a ver, a mão que o senhor examinou tornou-se sanguinária. Ouvimos falar dele, como nos anunciara, pois este
padre pálido, sabe qual era seu nome?
- Oh! meu Deus! - disse Desbarolles mudando de cor - receio saber.
- Pois o senhor sabe, era o infeliz Louis Verger!
Algumas semanas depois do que acabamos de contar, Eliphas Levi conversava com um livreiro que tem por
especialidade colecionar velhos livros de ciências ocultas sobre o grimório de Honório.
- É agora um artigo impossível de ser encontrado, dizia o comerciante. O último que tive nas mãos cedi-o a
um padre que ofereceu cem francos por ele.
- Um jovem padre! e lembra-se qual era sua fisionomia?
- Oh! perfeitamente. Mas o senhor deve conhecê-lo, pois ele contou-me tê-lo visto, e fui eu quem o indicou.
Assim, não havia mais dúvida, o infeliz padre encontrara o fatal grimório, fizera a evocação e preparara-se
para o crime através de uma série de sacrilégios, pois eis no que consiste a evocação infernal, segundo o
grimório de Honório:
"Escolher um galo preto e dar-lhe o nome do espírito das trevas que se quer evocar."
"Matar o galo, reservar sua língua, o coração e a primeira pena da asa esquerda."
"Deixar secarem a língua e o coração e reduzi-los a pó."
"Não comer carne e não beber vinho nesse dia."
"Na terça-feira, ao nascer do dia, dizer uma missa dos anjos."
"Traçar sobre o altar com a pena do galo molhada em vinho consagrado assinaturas diabólicas (aquelas do
lápis do senhor Home e das hóstias ensangüentadas de Vintras)."
"Na quarta-feira, preparar uma vela de cera amarela; levantar-se à meia-noite, e, sozinho numa igreja,
começar o ofício dos mortos."
"Misturar a esse ofício evocações infernais."
"Terminar o ofício à luz de uma única vela, que será em seguida apagada, e permanecer sem luz na igreja
assim profanada até o nascer do sol."
"Na quinta-feira, misturar à água benta o pó da língua e do coração do galo preto, e fazer um cordeiro macho
de nove dias engolir a mistura..."
A mão recusa-se a escrever o resto. É um misto de práticas brutais e atentados revoltantes apropriados a matar
o discernimento e a consciência.
Mas para comunicar-se com o fantasma do mal absoluto, para realizar o fantasma a ponto de vê-lo e tocá-lo,
não é preciso estar, necessariamente, sem consciência e sem discernimento?
Aí está certamente o segredo dessa inacreditável perversidade, dessas fúrias assassinas, desse ódio doentio
contra toda ordem, toda magistratura, toda hierarquia, dessa fúria sobretudo contra o dogma que santifica a
paz, a obediência, a doçura sob o símbolo tão comovente de uma mãe.
Esse infeliz estava certo de que não morreria. O imperador, acreditava ele, seria forçado a perdoá-lo, um
exílio honroso esperava-o, seu crime lhe daria uma enorme celebridade, seus devaneios seriam comprados a
peso de ouro pelos livreiros. Tornar-se-ia imensamente rico, atrairia a atenção de uma grande dama e se
casaria do outro lado do mar. Era com promessas semelhantes que outrora o fantasma do demônio também
tentava e fazia saltar de um crime a outro Gilles de Laval, senhor de Retz. Um homem capaz de evocar o
diabo, segundo os ritos do grimório de Honório, engajou-se de tal maneira na trilha do mal que está disposto a
todas as alucinações e a todas as mentiras. Assim Verger adormecia no sangue para acordar em não sei que
abominável Panteão; e acordou no cadafalso.
Mas as aberrações da perversidade não constituem uma loucura; a execução desse miserável provou-o.
Sabe-se que resistência desesperada ele opôs aos executores. "É uma traição", dizia, "não posso morrer assim!
Uma hora apenas, uma hora para escrever ao Imperador! O Imperador deve salvar-me."
Quem, pois, o traía?
Quem, pois, prometera-lhe a vida?
Quem, pois, assegurara-lhe de antemão uma clemência impossível, visto que ela teria revoltado a consciência
pública?
Perguntai tudo isso ao grimório de Honório!
Duas coisas nessa história tão trágica relacionam-se com os fenômenos do senhor Home: o ruído de
tempestade ouvido pelo mau padre quando de suas primeiras evocações e a perturbação que o impediu de
expor todo seu pensamento na presença de Eliphas Levi.
Pode-se observar também a aparição de um homem sinistro regozijando-se com o luto público e sustentando
um propósito verdadeiramente infernal em meio à multidão consternada, aparição observada apenas pela
extática da Salette, a tão célebre senhorita Merlière, que, não obstante ter a aparência de uma pessoa boa e
respeitável, é muito exaltada e capaz talvez de agir e de falar, sem se aperceber, sob a influência de um
sonambulismo ascético.
Esta palavra sonambulismo traz-nos de volta ao senhor Home, e nossos relatos não nos fizeram esquecer do
que o título deste trabalho prometia a nossos leitores.
Devemos dizer-lhes o que é o senhor Home.
Vamos manter nossa promessa.
O senhor Home é um doente afetado por um sonambulismo contagioso.
Isso é uma asserção.
Restou-nos uma explicação e uma demonstração a dar.
Essa explicação e essa demonstração, para serem completas, pediam um trabalho capaz de encher um livro.
Esse livro está pronto e publicá-lo-emos brevemente.
Eis seu título: A Razão dos Prodígios, ou o Diabo diante da Ciência.
Por que o diabo? Porque demonstramos através de fatos o que antes de nós o senhor Mirville
incompletamente pressentira.
Dizemos incompletamente porque o diabo é, para o senhor Mirville, uma personagem fantástica, enquanto
para nós é o uso abusivo de uma força natural.
Um médium disse: O inferno não é um lugar, é um Estado.
Poderíamos acrescentar: O diabo não é nem uma pessoa nem uma força; é um vício e, por conseguinte, uma
fraqueza.
Voltemos por um momento ao estudo dos fenômenos.
Os médiuns geralmente são seres doentes e limitados.
Nada de extraordinário podem fazer diante das pessoas calmas e instruídas.
É preciso estar habituado a seu contato para ver e sentir algo.
Os fenômenos não são os mesmos para todos os espectadores. Assim, onde um verá uma mão, o outro notará
apenas um vapor esbranquiçado.
As pessoas impressionáveis pelo magnetismo do senhor Home experimentam uma espécie de mal-estar;
parece-lhes que a sala gira, e têm a sensação de que a temperatura abaixa-se rapidamente.
Os prodígios ou os prestígios realizam-se melhor diante de um pequeno número de testemunhas escolhidas
pelo próprio médium.
Numa reunião de pessoas que verão os prestígios, pode encontrar-se uma que não verá absolutamente nada.
Dentre as pessoas que vêem, não vêem todas a mesma coisa.
Assim, por exemplo:
Numa noite, na casa da senhora B... I o médium fez aparecer o filho que essa senhora perdeu. Apenas a
senhora B... via a criança, o conde de M... via um pequeno vapor esbranquiçado em forma de pirâmide, as
outras pessoas nada viam.
Todo mundo sabe que certas substâncias, o haxixe, por exemplo, entorpecem sem privar do uso da razão, e
fazem ver, com uma surpreendente impressão de realidade, coisas que não existem.
Grande parte dos fenômenos do senhor Home pertencem a uma influência natural semelhante à do haxixe.
Eis por que o médium quer operar apenas diante de um pequeno número de pessoas escolhidas por ele.
O restante desses fenômenos deve ser atribuído ao poder magnético.
Ver algo com o senhor Home não é um indício tranqüilizador para a saúde de quem vê.
Aliás, mesmo que a saúde fosse excelente, essa visão revela uma perturbação passageira do aparelho nervoso
em suas relações com a imaginação e com a luz.
Se essa perturbação fosse frequentemente repetida, a pessoa se tornaria seriamente doente.
Quem sabe quantas catalepsias, tétanos, loucuras e mortes violentas a mania das mesas girantes já produziu?
Esses fenômenos tornam-se particularmente terríveis quando deles a perversidade se apodera.
É então que se pode realmente afirmar a intervenção e a presença do espírito do mal.
Perversidade ou fatalidade, os pretensos milagres obedecem a um desses dois poderes.
Quanto às escrituras cabalísticas e às assinaturas misteriosas, diremos que se reproduzem pela intuição
magnética das imagens do pensamento no fluido vital universal.
Esses reflexos instintivos podem produzir-se se o Verbo mágico nada tiver de arbitrário e se os signos do
santuário oculto forem a expressão natural das idéias absolutas.
É o que demonstramos em nosso livro.
Mas, para não remetermos nossos leitores do desconhecido ao futuro, vamos antecipar dois capítulos dessa
obra inédita, um sobre o Verbo cabalístico, o outro sobre os segredos da cabala, e deles tiraremos conclusões
que completarão de modo satisfatório para todos a explicação que prometemos para os fenômenos do senhor
Home.
Existe um poder gerador das formas; este poder é a luz.
A luz cria as formas segundo as leis das matemáticas eternas, pelo equilíbrio universal do dia e da sombra.
Os signos primitivos do pensamento delineiam-se por si sós na luz, que é o instrumento material do
pensamento.
Deus é a alma da luz. A luz universal e infinita é para nós como o corpo de Deus.
A cabala ou a alta magia é a ciência da luz.
A luz corresponde-se com a vida.
O reino das trevas é a morte.
Todos os dogmas da verdadeira religião estão escritos na cabala em caracteres de luz numa página de sombra.
A página de sombra são as crenças cegas.
A luz é o grande mediador plástico.
A aliança da alma com o corpo é um casamento de luz e de sombra.
A luz é o instrumento do Verbo, é a escritura branca de Deus no grande livro da noite.
A luz é a fonte dos pensamentos, e é nela que se deve buscar a origem de todos os dogmas religiosos. Mas só
há um verdadeiro dogma, como só há uma pura luz; apenas a sombra é infinitamente variada.
A luz, a sombra e sua união que é a visão dos seres, tal é o princípio analógico dos grandes dogmas da
Trindade, da Encarnação e da Redenção.
Tal é também o mistério da cruz.
Eis o que nos será fácil provar pelos monumentos religiosos, pelos signos do Verbo primitivo, pelos livros
iniciados na cabala, pela explicação racional, enfim, de todos os mistérios por meio das chaves da magia
cabalística.
Com efeito, em todos os simbolismos encontramos as idéias de antagonismo e de harmonia produzindo uma
noção trinitária na concepção divina, depois a personificação mitológica dos quatro pontos cardeais do céu
completa o setenário sagrado, base de todos os dogmas e de todos os ritos. Para convencermo-nos disto,
bastará relermos e meditarmos sobre a sábia obra de Dupuis, que seria um grande cabalista se tivesse visto
uma harmonia de verdades onde suas preocupações negativas apenas o deixaram ver um concerto de erros.
Não devemos refazer aqui o seu trabalho, que todos conhecem; mas o que importa provar é que a reforma
religiosa de Moisés era inteiramente cabalística, e que o cristianismo, ao instituir um dogma novo,
simplesmente reaproximou-se das fontes primitivas do mosaísmo, e que o Evangelho não é mais do que um
véu transparente lançado sobre os mistérios universais e naturais da iniciação oriental.
Um sábio notável, mas muito pouco conhecido, M. P. Lacour, em seu livro sobre os Eloim ou deuses de
Moisés, lançou nova luz sobre essa questão e encontrou nos símbolos do Egito todas as figuras alegóricas do
Gênesis. Mais recentemente, um bravo pesquisador, de vasta erudição, M. Vincent (de Yonne), publicou um
tratado sobre a idolatria entre os antigos e os modernos, onde ergue o véu da mitologia universal.
Convidamos os homens de estudos conscienciosos a lerem essas diferentes obras e nós nos concentraremos no
estudo especial da cabala entre os hebreus.
Sendo o Verbo, ou a palavra, segundo os iniciados nessa ciência, toda a revelação, os princípios da alta cabala
devem se encontrar reunidos nos próprios sinais que compõem o alfabeto primitivo.
Ora, eis o que encontramos em todas as gramáticas hebraicas.
Há uma letra principiante e universal geradora de todas as outras. É o Iod h .
Há duas outras letras mães opostas e análogas entre si; o Aleph t e o Mem n , seguindo-se a outras o Schin a .
Há sete letras duplas, o Beth c , o Ghimel d , o Daleth s , o Caph f , o Phé p , o Resch r e o Tau , .
Finalmente há doze simples que são as outras letras; ao todo, vinte e duas.
A unidade é representada de modo relativo pelo aleph, o ternário é figurado ou por iod, mem, schin, ou por
aleph, mem, schin.
O setenário por beth, ghimel, daleth, caph, phé, resch, tau.
O duodenário pelas outras letras. O duodenário é o ternário multiplicado por quatro; e entra também no
simbolismo do setenário.
Cada letra representa um número:
Cada conjunto de letras uma série de números.
Os números representam idéias filosóficas absolutas.
As letras são hieróglifos abreviados.
Vejamos agora as significações hieroglíficas e filosóficas de cada uma das vinte e duas letras. (Ver
Belarmino, Reuchlin, São Jerônimo, Kabbala denudata, o Sepher Yétsírah, Technica curiosa do padre Schott,
Pico delia Mirandola e os outros autores, especialmente os da coleção de Pistorius.)
As Mães
O iod - o princípio absoluto, o ser produtor;
O mem - o espírito, ou o Jaquim de Salomão;
O schin - a matéria, ou a coluna Boaz.
As Duplas
Beth - o reflexo, o pensamento, a lua, o anjo Gabriel, príncipe dos mistérios;
Ghimel - o amor, a vontade, Vênus, o anjo Anael, príncipe da vida e da morte;
Daleth - a força, o poder, Júpiter, Sachiel Melech, rei dos reis;
Caph - a violência, a luta, o trabalho, Mars Samaël Zébaoth, príncipe das falanges;
Phé - a eloqüência, a inteligência, Mercúrio, Rafael, príncipe das ciências;
Resch - a destruição e a regeneração, o Tempo, Saturno, Cassiel, rei dos túmulos e das solidões;
Tau - a verdade, a luz, o Sol, Micael, rei dos Eloim.
As Simples
As simples dividem-se em quatro ternários trazendo por títulos as quatro letras do tetragrama divino v u v h .
No tetragrama divino, o iod, como acabamos de dizer, figura o princípio produtor ativo. O he v representa o
princípio produtor passivo, o ctëiss. O vau , figura a união dos dois ou o linga, e o he final é a imagem do
princípio produtor secundário, isto é, da reprodução passiva no mundo dos efeitos e das formas.
As doze letras simples v u z y j h k b o g m e , divididas em grupos de três, reproduzem a noção do triângulo
primitivo, com a interpretação e sob a influência de cada uma das letras do tetragrama.
Vê-se que a filosofia e o dogma religioso da cabala estão indicados aí de modo completo mas velado.
Interroguemos agora as alegorias do Gênesis.
"No princípio (iod, a unidade do ser), Eloim, as forças equilibradas (Jaquin e Boaz) fizeram o céu (o espírito)
e a terra (a matéria), em outras palavras, o bem e o mal, a afirmação e a negação." Assim começa o relato de
Moisés.
Depois, quando se trata de dar um lugar ao homem e um primeiro santuário à sua aliança com a divindade,
Moisés fala de um jardim no meio do qual uma fonte única dividia-se em quatro rios (o Jod e o Tetragrama),
depois de duas árvores, uma da vida, outra da morte, plantadas perto do rio. Aí são colocados o homem e a
mulher, o ativo e o passivo, a mulher simpatiza com a morte e arrasta consigo em sua ruína Adão, eles são,
pois, expulsos do santuário da verdade e um chérub (uma esfinge com cabeça de touro, ver os hieróglifos da
Assíria, da Índia e do Egito) é colocado à porta do jardim da verdade para impedir os profanadores de
destruírem a árvore da vida. Aí está, portanto, o dogma misterioso com todas as suas alegorias e seus horrores
que sucede à simples verdade. O ídolo substituiu Deus, e a humanidade decadente não tardará a dedicar-se ao
culto do novilho de ouro.
O mistério das reações necessárias e sucessivas dos dois princípios um sobre o outro é, em seguida, indicado
pela alegoria de Caim e Abel. A força vinga-se, por opressão, das seduções da fraqueza; a fraqueza mártir
expia e intercede pela força condenada em conseqüência do crime à vergonha e ao remorso. Assim revela-se o
equilíbrio do mundo moral, assim assenta-se a base de todas as profecias e o ponto de apoio de toda política
inteligente. Abandonar uma força a seus próprios excessos é condená-la ao suicídio.
O que faltou a Dupuis para compreender o dogma religioso universal da cabala foi a ciência desta bela
hipótese demonstrada em parte e realizada a cada dia mais pelas descobertas da ciência: a analogia universal.
Privado dessa chave do dogma transcendental, não pôde ver em todos os deuses senão o sol, os sete planetas e
os doze signos do zodíaco, mas não viu no sol a imagem do logos de Platão, nos sete planetas as sete notas da
gama celeste, e no zodíaco a quadratura do ciclo ternário de todas as iniciações.
O imperador Juliano, esse espiritualista incompreendido, esse iniciado cujo paganismo era menos idólatra do
que a fé de certos cristãos, o imperador Juliano, dizemos, compreendia melhor que Dupuis e Volnay o culto
simbólico ao sol. Em seu hino ao rei Hélio reconhece que o astro do dia é apenas o reflexo e a sombra
material daquele sol de verdade que ilumina o mundo da inteligência e que é ele próprio apenas um clarão
tomado emprestado ao absoluto.
Coisa notável, Juliano tem o Deus supremo que os cristãos pensavam serem os únicos a adorar, idéias bem
maiores e bem mais justas do que as de vários pais da Igreja, adversários e contemporâneos desse imperador.
Eis como ele expressa-se em sua defesa do helenismo:
"Não basta escrever num livro: Deus disse, e as coisas foram feitas. É preciso ver se as coisas que atribuem a
Deus não são contrárias às próprias leis do Ser. Pois, se assim for, Deus não as pode ter feito, ele que não
pode dar desmentidos à natureza sem negar-se a si próprio... Sendo Deus eterno, é absolutamente necessário
que suas ordens sejam imutáveis como ele."
Eis como falava esse apóstata e esse ímpio, e mais tarde um doutor cristão, que se tornou o oráculo das
escolas de teologia, devia, inspirando-se talvez nas belas palavras do descrente, colocar um freio em todas as
superstições ao escrever esta bela e corajosa máxima que tão bem resume o pensamento do grande imperador:
"Uma coisa não é justa porque Deus a quer; mas Deus a quer porque ela é justa."
A idéia de uma ordem perfeita e imutável na natureza, a noção de uma hierarquia ascendente e de uma
influência descendente em todos os seres fornecerá aos antigos hierofantes a primeira classificação de toda a
história natural. Os minerais, os vegetais, os animais foram estudados analogicamente, e atribuíram-se sua
origem e suas propriedades ao princípio passivo ou ao princípio ativo, às trevas ou à luz. O signo de sua
eleição ou de sua reprovação, desenhado na sua forma, tornou-se o caráter hieroglífico de um vício ou de uma
virtude; depois, de tanto tomar o signo pela coisa, e exprimir a coisa pelo signo, acabou-se por confundi-los, e
tal é a origem da história natural fabulosa em que leões deixam-se abater por galos, em que delfins morrem de
dores após haverem feito ingratos entre os homens, em que mandrágoras falam e estrelas cantam. Esse mundo
encantado é verdadeiramente o domínio poético da magia; mas tem como realidade apenas a significação dos
hieróglifos que lhe deram origem. Para o sábio que compreende as analogias da alta cabala e a relação exata
das idéias com os signos, esse país fabuloso das fadas é uma região ainda fértil em descobertas, pois as
verdades muito belas ou muito simples para agradar aos homens sem véus foram todas ocultadas sob essas
sombras engenhosas.
Sim, o galo pode intimidar o leão e tornar-se seu mestre, porque a vigilância frequentemente substitui a força
e consegue domar a cólera. As outras fábulas da pretensa história natural dos antigos explicam-se do mesmo
modo, e, nesse uso alegórico das analogias, já se pode compreender os abusos possíveis e pressentir os erros
que se devem ter originado na cabala.
A lei das analogias foi, de fato, para os cabalistas da segunda ordem, o objeto de uma fé cega e fanática. É a
essa crença que devem ser relacionadas todas as superstições reprovadas aos adeptos das ciências ocultas. Eis
como raciocinavam:
O signo exprime a coisa.
A coisa é a virtude do signo.
Há correspondência analógica entre o signo e a coisa significada.
Quanto mais perfeito é o signo, mais a correspondência é total.
Dizer uma palavra é evocar um pensamento e torná-lo presente. Dizer Deus, por exemplo, é manifestar Deus.
A palavra age sobre as almas e as almas reagem sobre os corpos; pode-se, portanto, assustar, consolar, fazer
adoecer, curar, matar e ressuscitar por palavras.
Proferir um nome é criar ou chamar um ser.
No nome está contida a doutrina verbal ou espiritual do próprio ser.
Quando a alma evoca um pensamento, o signo desse pensamento escreve-se por si só na luz. Invocar é
adjurar, isto é, jurar por um nome: é fazer ato de fé nesse nome e comungar na virtude que ele representa.
As palavras, portanto, são por si próprias boas ou más, venenosas ou salutares.
As palavras mais perigosas são as palavras vãs e proferidas levianamente, porque são abortos voluntários do
pensamento.
Uma palavra inútil é um crime contra o espírito de inteligência. É um infanticídio intelectual.
As coisas são para cada pessoa o que ela as faz ao denominá-las. O verbo de cada pessoa é uma impressão ou
uma prece habitual.
Falar bem é viver bem.
Um belo estilo é uma auréola de santidade.
Desses princípios, uns verdadeiros, outros hipotéticos, e das conseqüências mais ou menos exageradas que
deles tiravam, resultava para os cabalistas supersticiosos uma confiança absoluta nos encantamentos,
evocações, conjurações e orações misteriosas. Ora, como a fé sempre realiza prodígios, nunca lhe faltaram as
aparições, os oráculos, as curas maravilhosas, as doenças súbitas e estranhas.
Foi assim que uma simples e sublime filosofia tornou-se a ciência secreta da magia negra. É sobretudo desse
ponto de vista que a cabala pode ainda excitar a curiosidade da maioria em nosso século tão desconfiado e tão
crédulo. No entanto, como acabamos de expor, a verdadeira ciência não está aí.
Os homens raramente procuram a verdade por ela mesma; têm sempre por motivo secreto em seus esforços
alguma paixão a satisfazer ou alguma cupidez a saciar. Dentre os segredos da cabala, há um que sempre
atormentou os pesquisadores: o segredo da transmutação dos metais e a conversão de todas as substâncias
terrestres em ouro.
De fato, a alquimia tomou emprestado à cabala todos os seus signos, e era na lei das analogias, resultantes da
harmonia dos contrários, que baseava suas operações. Um segredo físico imenso estava, aliás, oculto sob
parábolas cabalísticas dos antigos. Conseguimos decifrá-lo e vamos confiá-lo às investigações dos fazedores
de ouro. Ei-lo:
1o - Os quatro fluidos imponderáveis são apenas as manifestações diversas de um mesmo agente universal que
é a luz.
2o - A luz é o fogo que serve à grande obra sob forma de eletricidade.
3o - A vontade humana dirige a luz vital por meio do aparelho nervoso. Em nossos dias isso denomina-se
magnetizar.
4o - O agente secreto da pedra filosofal, o azote dos sábios, o ouro vivo e vivificante dos filósofos, o agente
produtor metálico universal é a ELETRICIDADE MAGNETIZADA.
A aliança dessas duas palavras ainda não nos diz muito e, no entanto, elas talvez encerrem uma força capaz de
revolucionar o mundo. Dizemos talvez por conveniência filosófica, pois, de nossa parte, não duvidamos da
alta importância desse grande arcano hermético.
Acabamos de dizer que a alquimia é filha da cabala; e, para convencer-se disso, basta interrogar os símbolos
de Flamel, de Basílio Valentim, as páginas do judeu Abraão e os oráculos mais ou menos apócrifos da mesa
de esmeralda de Hermez. Em toda a parte encontram-se os traços dessa década de Pitágoras tão
brilhantemente aplicada, no Sepher Yétsirah, à noção completa e absoluta das coisas divinas, essa década
composta da unidade e de um tríplice ternário que os rabinos denominaram o Bereschit e a Mercabah, a
árvore luminosa das Sefirotes e a chave dos Schemamphorasch.
Falamos, com certa extensão, em nosso livro intitulado Dogma e Ritual da Alta Magia, de um monumento
hieroglífico conservado até os nossos dias sob um pretexto fútil, e que sozinho explica todas as escrituras
misteriosas da alta iniciação. Esse monumento é o tarô dos Boêmios que deu origem a nossos jogos de cartas.
Compõe-se de vinte e duas letras alegóricas e de quatro séries, cada uma de dez hieróglifos relativos às quatro
letras do nome de Jehovah. As diversas combinações desses signos e dos números que lhes correspondem
formam a mesma quantidade de oráculos cabalísticos, de modo que a ciência inteira está contida nesse livro
misterioso. Essa máquina filosófica perfeitamente simples surpreende pela profundidade e exatidão de seus
resultados.
O abade Trithème, um de nossos maiores mestres em magia, compôs sobre o alfabeto cabalístico um trabalho
muito engenhoso a que ele denomina poligrafia. É uma série combinada de alfabetos progressivos em que
cada letra representa uma palavra, as palavras correspondem-se e completam-se de um alfabeto ao outro, e
não há dúvida de que Trithème teve conhecimento do tarô e dele se utilizou para dispor numa ordem lógica
suas sábias combinações.
Jerônimo Cardano conhecia o alfabeto simbólico dos iniciados como se pode reconhecer pelo número e pela
disposição dos capítulos de sua obra sobre a sutileza. Essa obra, com efeito, é composta de vinte e dois
capítulos, e o tema de cada capítulo é análogo ao número e à alegoria da carta correspondente no tarô.
Fizemos a mesma observação sobre um livro de São Martinho intitulado Quadro Natural das Relações que
existem entre Deus, o Homem e o Universo. A tradição desse segredo não foi, pois, interrompida desde os
primórdios da cabala até os nossos dias.
Os giradores de mesa e os que fazem falar os espíritos através de quadrantes alfabéticos estão, pois, muitos
séculos atrasados e não sabem que existe um instrumento de oráculo claro e de um sentido exato por meio do
qual se pode comunicar com os sete gênios dos planetas e fazer falar à vontade as setenta e duas rodas de
Aziah, Jezirah e Briah. Para isso basta conhecer o sistema de analogias universais, tal como expôs
Swedenborg na chave hieroglífica dos arcanos, depois embaralhar as cartas e tirar ao acaso, dispondo-as
sempre pelos números correspondentes às idéias cujos esclarecimentos se deseja, depois ler os oráculos como
devem ser lidas as escrituras cabalísticas, isto é, começando no meio indo da direita para a esquerda para os
números ímpares, começando à direita para os pares e interpretando sucessivamente o número pela letra que
lhe corresponde, o conjunto das cartas pela adição de seus números e todos os oráculos sucessivos por sua
ordem numeral e suas relações hieroglíficas.
Essa operação dos sábios cabalistas para encontrar o desenvolvimento rigoroso das idéias absolutas degenerou
em superstições em meio aos padres ignorantes e aos nômades ancestrais dos Boêmios que possuíam o tarô da
Idade Média, sem conhecer seu verdadeiro emprego e que dele se serviam unicamente para ler a sorte.
O jogo de xadrez, atribuído a Palamedes, não tem outra origem senão o tarô, e nele encontram-se as mesmas
combinações e os mesmos símbolos, o rei, a rainha, o cavaleiro, o soldado, o louco, a torre, depois casas
representando os números. Os antigos jogadores de xadrez procuravam em seu tabuleiro a solução dos
problemas filosóficos e religiosos, e argumentavam um contra o outro em silêncio manobrando os caracteres
hieroglíficos através dos números. Nosso vulgar jogo do ganso, copiado dos gregos e igualmente atribuído a
Palamedes, é apenas um tabuleiro de figuras imóveis e números móveis por meio dos dados. É um tarô
disposto em roda destinado ao uso dos aspirantes à iniciação. Ora, a palavra tarô, em que se encontram rota e
tora, exprime ela própria, como demonstrou-o Guilherme Postel, essa disposição primitiva em forma de roda.
Os hieróglifos do jogo do ganso são mais simples que os do tarô, mas encontram-se aí os mesmos símbolos: o
bobo, o rei, a rainha, a torre, o diabo ou tífon, a morte, etc. As probabilidades aleatórias desse jogo
representam as da vida e escondem um sentido filosófico bastante profundo para fazer meditar os sábios e
bastante simples para ser compreendido pelas crianças.
A personagem alegórica de Palamedes é aliás idêntica às de Henoc, de Hermes e de Cádmo, aos quais atribui-
se a invenção das letras nas diversas mitologias. Mas, no pensamento de Homero, Palamedes, o revelador e a
vítima de Ulisses, representa o iniciador ou o gênio cujo destino eterno é ser morto por aqueles que inicia. O
discípulo torna-se a realização viva dos pensamentos do mestre apenas depois de ter tomado seu sangue e
comido sua carne, segundo a enérgica e alegórica expressão do iniciador tão mal compreendido pelos cristãos.
A concepção do alfabeto primitivo era, como se pode ver, a idéia de uma língua universal, encerrando em
suas combinações e em seus próprios signos o resumo e a lei da evolução de todas as ciências divinas e
humanas. Acreditamos que, desde então, nada mais bonito nem maior foi sonhado pelo gênio dos homens e
confessamos que a descoberta desse segredo do mundo antigo compensou-nos plenamente por tantos anos de
pesquisas estéreis e trabalhos ingratos nas criptas das ciências perdidas e nas necrópoles do passado.
Um dos primeiros resultados dessa descoberta seria uma nova direção dada ao estudo das escrituras
hieroglíficas ainda tão imperfeitamente decifradas pelos êmulos e pelos sucessores de Champollion. Sendo o
sistema de escritura dos discípulos de Hermes analógico e sintético como todos os signos da cabala, para a
leitura das páginas gravadas nas pedras dos antigos templos não importaria recolocar essas pedras em seu
lugar e contar o número de suas letras comparando-as com os números das outras pedras?
O obelisco de Lúxor, por exemplo, não era uma das duas colunas da entrada de um templo? ficava à direita ou
à esquerda? Se ficava à direita, seus sinais referem-se ao princípio ativo; se ficava à esquerda, é pelo princípio
passivo que se devem interpretar seus caracteres. Mas deve haver uma correspondência exata de um obelisco
ao outro, e cada signo deve receber seu sentido completo da analogia dos contrários; Champollion encontrou
traços do copta nos hieróglifos, um outro sábio talvez encontrasse mais facilmente e mais felizmente o
hebraico, mas o que diriam se não fosse nem hebraico nem copta? Se fosse, por exemplo, a língua universal
primitiva? Ora, essa língua, que é a da alta cabala, existiu certamente, existe na base do próprio hebraico e de
todas as línguas orientais que dele derivam, essa língua é a do santuário, e as colunas da entrada dos templos
geralmente resumiam todos os seus símbolos. A intuição dos extáticos aproxima-se mais da verdade sobre
esses signos primitivos do que a própria ciência dos sábios. Isso porque, como dissemos, o fluido vital,
universal, a luz astral, sendo princípio mediador entre as idéias e as formas, obedece aos impulsos
extraordinários da alma que procura o desconhecido e fornece-lhe naturalmente os signos já encontrados, mas
esquecidos, das grandes revelações do ocultismo. Assim formaram-se as pretensas assinaturas dos espíritos,
assim produziram-se as escrituras misteriosas de Gablidone que visitava o doutor Laváter, dos fantasmas de
Schroepfer, do São Miguel de Vintras e dos espíritos do senhor Home.
Se a eletricidade pode mover um corpo leve ou mesmo pesado sem que seja tocado, seria impossível, pelo
magnetismo, dar à eletricidade uma direção e assim produzir naturalmente sinais e escrituras? É certamente
possível, uma vez que isso é feito.
Assim, portanto, aos que nos perguntarem qual é o maior agente dos prodígios, responderemos:
- É a matéria-prima da pedra filosofal.
- É a ELETRICIDADE MAGNETIZADA.
Tudo foi criado pela luz.
É na luz que a forma conserva-se.
É pela luz que a forma reproduz-se.
As vibrações da luz são o princípio do movimento universal.
Pela luz os sóis ligam-se uns aos outros e entrelaçam seus raios como cadeias de eletricidade.
Os homens e as coisas são imantados de luz como os sóis e podem, por meio de cadeias eletromagnéticas
estendidas pelas simpatias e afinidades, comunicar-se uns com os outros de uma à outra extremidade do
mundo, acariciar-se ou bater-se, curar-se ou ferir-se de modo natural certamente, mas prodigioso e invisível.
Aí está o segredo da magia.
A magia, a ciência que nos vem dos magos. A magia, a primeira das ciências.
A mais santa de todas, uma vez que estabelece de modo mais sublime as grandes verdades religiosas.
A mais caluniada de todas, porque o vulgo obstina-se em confundir a magia com a bruxaria supersticiosa
cujas práticas abomináveis denunciamos.
É somente pela magia que pode, diante das questões enigmáticas da Esfinge de Tebas e das obscuridades por
vezes escandalosas difundidas nos relatos da Bíblia, responder a tais perguntas e encontrar a solução desses
problemas da história judaica.
Os próprios historiadores sagrados reconhecem a existência e o poder da magia que concorria abertamente
com o de Moisés.
A Bíblia conta-nos que Janes e Mambres, os mágicos do Faraó, fizeram em primeiro lugar os mesmos
milagres que Moisés, e que declararam impossíveis à ciência humana os que não puderam imitar. Com efeito,
é mais lisonjeiro para o amor-próprio de um charlatão confessar o milagre do que declarar-se vencido pela
ciência ou pela destreza de um colega, sobretudo quando esse colega é um inimigo político ou um adversário
religioso.
Onde começa e onde termina o possível na ordem dos milagres mágicos? Eis uma grave e importante questão.
É certa a existência dos fatos habitualmente classificados como milagres. Os magnetizadores e os sonâmbulos
fazem-nos todos os dias; a irmã Rose Tamisier os fez, o iluminado Vintras ainda os faz; mais de quinze mil
testemunhas atestavam ultimamente os dos médiuns da América, dez mil camponeses do Berry e da Sologne
atestariam, se necessário, os do deus Cheneau (um antigo comerciante de botões retirado dos negócios e que
se acredita inspirado por Deus). Todas essas pessoas são alucinadas ou espertalhonas? Alucinadas, talvez, mas
o próprio fato de ser sua alucinação idêntica, seja separadamente, seja coletivamente, não é um milagre
bastante grande da parte de quem o produz sempre que deseja e no momento oportuno?
Fazer milagres ou persuadir a multidão de que os faz é quase a mesma coisa, sobretudo num século tão
leviano e tão zombeteiro quanto o nosso. Ora, o mundo está cheio de taumaturgos, e a ciência é
freqüentemente obrigada a negar suas obras ou a recusar-se a vê-las para não ser obrigada a examiná-las e
atribuir-lhes uma causa.
No século passado, repercutiram em toda a Europa os prodígios de Cagliostro. Quem não sabe de todo o
poder que se atribuía a seu vinho do Egito e a seu elixir? Que poderíamos acrescentar a tudo o que se conta
daquelas ceias do outro mundo, em que ele fazia aparecer em carne e osso os personagens ilustres do
passado? No entanto, Cagliostro estava longe de ser um iniciado da primeira ordem, já que a grande
associação dos adeptos abandonou-o à inquisiçao romana, diante da qual, se se deve acreditar nas peças de
seu processo, deu uma ridícula e odiosa explicação do trigrama maçônico L.’.P.’.D.’.
Mas os milagres não são um quinhão exclusivo dos iniciados da primeira ordem e freqüentemente são
realizados por seres sem instrução e sem virtude. As leis naturais encontram num organismo, cujas qualidades
excepcionais nos escapam, uma ocasião para exercerem-se, e fazem sua obra, como sempre, com precisão e
calma. Os gourmets mais delicados apreciam as trufas e consomem-nas, mas são os porcos que as
desenterram: analogicamente, ocorre o mesmo com muitas coisas menos materiais e menos gastronômicas: os
instintos procuram e pressentem, mas apenas a ciência verdadeiramente encontra.
O progresso atual do conhecimento humano diminuiu muito as chances dos prodígios, mas resta ainda um
grande número deles, uma vez que não se conhece nem a força da imaginação nem a razão de ser e o poder do
magnetismo. A observação das analogias universais foi negligenciada e é por isso que não se crê mais na
adivinhação.
Um sábio cabalista ainda pode, portanto, assustar a multidão e confundir até mesmo as pessoas instruídas:
1o - Adivinhando as coisas ocultas;
2o predizendo muitas coisas futuras;
3o dominando a vontade dos outros de modo a impedi-los de fazer o que desejam e a forçá-los a fazer o que
não desejam;
4o excitando à vontade aparições e sonhos;
5o curando um grande número de doenças;
6o devolvendo a vida a sujeitos em que se manifestam todos os sintomas da morte;
7o finalmente, demonstrando, com exemplos, se necessário, a realidade da pedra filosofal e da transmutação
dos metais, segundo os segredos de Abraão, o Judeu, de Flamel e de Raimundo Lúlio.
Todos esses prodígios operam-se por meio de um único agente que os hebreus chamavam OD, como o
cavaleiro de Reichenbach; que chamamos luz astral, com a escola de Pasqualis Martinez; que Mirville chama
diabo; que os antigos alquimistas denominavam azote. É o elemento vital que se manifesta pelos fenômenos
de calor, de luz, de eletricidade e de magnetismo, que imanta todos os globos terrestres e todos os seres vivos.
Nesse agente manifestam-se as provas da doutrina cabalística sobre o equilíbrio e o movimento pela dupla
polaridade, em que uma atrai enquanto a outra repele, em que uma produz o quente, a outra o frio, enfim em
que uma dá uma luz azul e esverdeada, a outra uma luz amarela e avermelhada.
Esse agente, por seus diferentes modos de imantação, atrai-nos uns para os outros ou distancia-nos uns dos
outros, submete um às vontades do outro fazendo-o entrar em seu círculo de atração, restabelece ou perturba o
equilíbrio na economia animal por suas transmutações e seus eflúvios alternativos, recebe e transmite as
impressões da força imaginária, que é no homem a imagem e a semelhança do verbo criador, produz, assim,
os pressentimentos e determina os sonhos. A ciência dos milagres é, pois, o conhecimento dessa força
maravilhosa, e a arte de fazer milagres é tão simplesmente a arte de imantar ou de iluminar os seres segundo
as leis invariáveis do magnetismo ou da luz astral.
Preferimos a palavra luz a magnetismo, porque ela é mais tradicional no ocultismo e expressa de modo mais
completo e perfeito a natureza do agente secreto. Encontra-se aí, verdadeiramente, o ouro fluido e potável dos
mestres da alquimia, a palavra ouro vem do hebraico or, que significa luz. "O que quereis?", perguntava-se
aos recipiendários de todas as iniciações. "Ver a luz", devia-se responder. O nome iluminados, que
comumente se dá aos adeptos, foi, pois, muito mal interpretado quando lhe deram um sentido místico, como
se significasse homens cuja inteligência teria se tornado iluminada num dia miraculoso. Iluminados quer dizer
simplesmente conhecedores e possuidores da luz, seja pela ciência do grande agente mágico, seja pela noção
racional e ontológica do absoluto.
O agente universal é a força vital e subordinada à inteligência. Abandonado a si próprio, devora rapidamente,
como Moloch, tudo o que gera, e transforma em vasta destruição a superabundância da vida. É, então, a
serpente infernal dos antigos mitos, o Tífon dos egípcios e o Moloch da Fenícia; mas, se a sabedoria, mãe dos
Eloim, coloca-lhe o pé sobre a cabeça, extingue todas as chamas vomitadas por ele e derrama sobre a terra, a
mãos cheias, uma luz vivificante. Do mesmo modo está dito no Zohar que no início de nosso período
terrestre, quando os elementos disputavam entre si a superfície do mundo, o fogo, semelhante a uma serpente
imensa, envolvera tudo em suas espirais e ia consumir todos os seres, quando a clemência divina, erguendo à
sua volta as ondas do mar como uma vestimenta de nuvens, colocou o pé sobre a cabeça da serpente e fê-la
retornar ao abismo. Quem não vê nessa alegoria o primeiro dado e a explicação mais razoável de uma das
imagens mais caras ao simbolismo católico, o triunfo da mãe de Deus?
Os cabalistas dizem que o nome oculto do diabo, seu verdadeiro nome, é o mesmo de Jehovah escrito às
avessas. Isso é toda uma revelação para o iniciado aos mistérios do tetragrama. De fato, a ordem das letras
desse grande nome indica a predominância da idéia sobre a forma, do ativo sobre o passivo, da causa sobre o
efeito. Invertendo-se essa ordem obtém-se o contrário. Jehovah é aquele que doma a natureza como a um
cavalo bravio e a faz ir onde ele quer, chevajoh (o demônio) é o cavalo sem freio que, semelhante aos dos
egípcios no cântico de Moisés, derruba seu cavaleiro arrastando-o consigo para o abismo.
O diabo, pois, existe de modo muito real para os cabalistas, mas não é nem uma pessoa, nem um poder
distinto das próprias forças da natureza. O diabo é a divagação ou o sono da inteligência. É a loucura e a
mentira.
Assim explicam-se todos os pesadelos da Idade Média, assim explicam-se também os estranhos símbolos de
alguns iniciados, como os dos Templários, por exemplo, bem menos culpados por terem prestado culto a
Baphomet do que por terem revelado sua imagem a profanos. O Baphomet, figura panteística do agente
universal, não é outra coisa senão o demônio barbudo dos alquimistas. Sabe-se que os mais graduados na
antiga maçonaria hermética atribuíam a um demônio barbudo dar conclusão à pedra filosofal, cabendo ao não
iniciado nesta palavra persignar-se e tapar a vista, mas os iniciados ao culto de Hermès-Panthée
compreendiam a alegoria e cuidavam em não explicá-la aos profanos.
Mirville, num livro atualmente quase esquecido, mas que teve certa repercussão há alguns meses, deu-se
muito trabalho para reunir algumas bruxarias no gênero das que enchem as compilações dos Delancre, dos
Delrio e dos Bodin. Teria encontrado melhor do que isso na história. E sem falar dos milagres tão averiguados
dos jansenistas de PortRoyal e do diácono Páris, que pode haver de mais maravilhoso do que a grande
monomania do marítimo que fez as crianças e as próprias mulheres acorrerem ao suplício como a uma festa
durante trezentos anos? Que pode haver de mais magnífico do que essa fé entusiasta atribuída durante tantos
séculos aos mais incompreensíveis e, humanamente falando, mais revoltantes dos mistérios? Nessa ocasião,
direis, os milagres vinham de Deus, e servimo-nos deles até como uma prova para estabelecer a verdade da
religião. Ora essa! Os heréticos também deixavam-se matar por dogmas francamente bastante absurdos;
sacrificavam, pois, também a razão e a vida ao seu credo? Oh! com relação aos heréticos é evidente que o
diabo estava em jogo. Pobres-coitados que tomavam o diabo por Deus e Deus pelo diabo! Como desiludiram-
se quando os fizeram reconhecer o verdadeiro Deus na caridade, na ciência, na justiça e sobretudo na
misericórdia de seus ministros!
Os necromantes, que fazem aparecer o diabo após uma série fatigante e quase impossível das mais revoltantes
evocações, são apenas crianças ao pé do Santo Antônio da lenda que os tirava aos milhares do inferno e os
arrastava sempre consigo, como de Orfeu se conta que atraía para si os carvalhos, as rochas e os animais mais
selvagens.
Somente Callot, iniciado pelos boêmios nômades durante a infância aos mistérios da bruxaria negra, pôde
compreender e reproduzir as evocações do primeiro eremita. E credes que ao descreverem os sonhos
assustadores da maceração e do jejum, os legendários tenham inventado? Não; ficaram muito aquém da
realidade. Os claustros, com efeito, sempre foram povoados por espectros sem nome, cujas sombras e larvas
infernais pulsam em suas paredes. Certa vez, Santa Catarina de Sena passou oito dias em meio a uma orgia
obscena que teria desencorajado a veia poética de Aretino; Santa Teresa sentiu-se transportada viva ao inferno
e aí sofreu, entre muralhas que se juntavam, angústias que apenas as mulheres histéricas poderão
compreender... Tudo isso, dirse-á, passava-se na imaginação dos pacientes. Mas onde, pois, quereis que se
possam passar fatos de ordem sobrenatural? O certo é que todos esses visionários viram, tocaram, tiveram o
sentimento lancinante de uma realidade aterradora. Falamos baseados em nossa própria experiência, e há
visões de nossa primeira juventude passada num recolhimento e num ascetismo cuja lembrança ainda nos faz
estremecer.
Deus e o diabo são o ideal do bem e do mal absolutos. Mas o homem nunca concebe o mal absoluto senão
como uma falsa idéia do bem. Só o bem pode ser absoluto, e o mal é relativo unicamente a nossas ignorâncias
e a nossos erros. Todo homem para ser deus faz-se primeiro diabo; mas, como a lei da solidariedade é
universal, a hierarquia existe no inferno como no céu. Um ser malévolo sempre encontrará um pior do que ele
para fazer-lhe mal; e quando o mal atinge seu ápice é preciso que cesse, pois só poderia continuar pelo
aniquilamento do ser, o que é impossível. Então os homens-diabo, esgotados seu recursos, recaem no domínio
dos homens-Deus e são salvos por aqueles que inicialmente pareciam ser suas vítimas; mas o homem que se
esmera em viver fazendo o mal presta homenagem ao bem por toda a inteligência e energia que desenvolve
em si próprio. É por isso que o grande iniciador dizia em sua linguagem figurada: Sede frios ou quentes,
porque se sois mornos fazeis-me vomitar.
O grande mestre, numa de suas parábolas, condena unicamente o preguiçoso que enterrou seu depósito por
medo de perdê-lo nas operações arriscadas desse banco que se chama vida. Nada pensar, nada amar, nada
querer, nada fazer, eis o verdadeiro pecado. A natureza reconhece e recompensa apenas os trabalhadores.
A vontade humana desenvolve-se e aumenta pela atividade. Para querer realmente, é preciso agir. A ação
domina e sempre arrasta a inércia. Tal é o segredo da influência dos pretensos celerados sobre as pessoas
supostamente honestas. Quantos poltrões e covardes crêem-se virtuosos porque têm medo! Quantas mulheres
honradas olham com inveja para as prostitutas! Não faz ainda muito tempo os galerianos estavam na moda.
Por quê? Pensais que a opinião pública nunca possa render homenagem ao vício? Não, mas ela faz justiça à
atividade e à audácia, e está na ordem que os covardes infames estimem os bandidos audaciosos.
A audácia unida à inteligência é a mãe de todos os sucessos neste mundo. Para empreender, é preciso saber;
para realizar, é preciso querer; para querer verdadeiramente, é preciso ousar; e, para recolher em paz os frutos
da própria audácia, é preciso calar-se.
SABER, OUSAR, QUERER, CALAR-SE são, como dissemos antes, os quatro verbos cabalísticos que
correspondem às quatro letras do tetragrama e às quatro formas hieroglíficas da Esfinge. Saber é a cabeça
humana; ousar são as garras do leão; querer são as ilhargas laboriosas do touro; calar-se são as asas místicas
da águia. Apenas mantém-se acima dos outros homens quem não prostitui os segredos de sua inteligência aos
comentários e ao escárnio daqueles.
Todos os homens verdadeiramente fortes são magnetizadores e o agente universal obedece à sua vontade. É
assim que eles operam maravilhas. Fazem-se acreditar, fazem-se seguir e quando dizem: Isto é assim, a
natureza de certa forma muda aos olhos do vulgo e torna-se o que o grande homem quis. Isto é minha carne e
isto é meu sangue, disse um homem que se fez Deus por suas virtudes e, em presença de um pedaço de pão e
de um pouco de vinho, dezoito séculos viram, tocaram, provaram, adoraram a carne e o sangue divinizados
pelo martírio! Dizei-nos agora que a vontade humana nunca realiza milagres!
Não nos faleis aqui de Voltaire, Voltaire não foi um taumaturgo, foi o espiritual e eloqüente intérprete
daqueles sobre os quais os milagres não agiam mais. Tudo em sua obra é negativo; ao contrário, tudo era
afirmativo na de Galileu, como o chamava um ilustre e muito infeliz imperador. Do mesmo modo, Juliano
tentara em sua época mais do que Voltaire pôde realizar, queria opor o prestígio aos prestígios, a austeridade
do poder à do protesto, as virtudes às virtudes, os milagres aos milagres; os cristãos jamais tiveram inimigos
tão perigosos, e sentiram-no bem, pois Juliano foi assassinado, e a lenda dourada ainda atesta que um santo
mártir, acordado na tumba pelos clamores da Igreja, pegou das armas e feriu o apóstata no ombro em meio a
seu exército e a suas vitórias. Tristes mártires que ressuscitam para serem algozes! Crédulo imperador que se
fiava em seus deuses e nas virtudes dos tempos antigos.
Quando os reis da França viviam cercados pela adoração de seu povo, quando eram vistos como os ungidos
do Senhor e os primogênitos da Igreja, curavam escrófulas. Um homem em voga fará milagres quando quiser.
Cagliostro podia ser apenas um charlatão, mas, desde que a opinião pública fizera dele o divino Cagliostro,
ele devia operar prodígios, e foi também o que aconteceu.
Quando Céphas Barjona era apenas um judeu, proscrito por Nero e que vendia às mulheres dos escravos um
específico para a vida eterna, não passava de um charlatão para todas as pessoas instruídas de Roma; mas a
opinião pública fez do empírico espiritualista um apóstolo; e os sucessores de Pedro, sejam eles Alexandre VI
ou mesmo João XXII, são infalíveis para todo homem bem-educado e que não deseje ser inutilmente banido
da sociedade. Assim segue o mundo.
O charlatanismo, quando bem-sucedido, é, pois, em magia como em todas as coisas, um grande instrumento
de poder. Fascinar habilmente o vulgo não é já dominá-lo? Vê-se que os pobres-diabos dos bruxos que, na
Idade Média, tolamente faziam-se queimar vivos não tinham um grande domínio sobre os outros. Joana d'Arc
era mágica à frente dos exércitos, e em Rouen a pobre moça não foi bruxa. Sabia apenas orar e combater, e o
prestígio que a rodeava cessou assim que lhe colocaram os grilhões. Consta de sua história que o rei da França
a tenha reclamado? Que a nobreza francesa, que o povo, que o exército tenham protestado contra sua
condenação? O papa, de quem o rei da França era o primogénito, excomungou os algozes da Virgem? Não,
nada disso. Joana d'Arc foi bruxa para todos assim que deixou de ser mágica, e certamente não foram os
ingleses os únicos a queimá-la. Quando se exerce um poder aparentemente sobre-humano, é preciso exercê-lo
sempre ou resignar-se a perecer. O mundo vinga-se sempre covardemente por ter acreditado muito, admirado
muito e sobretudo obedecido muito.
Só compreendemos o poder mágico em sua aplicação às grandes coisas, se um verdadeiro mágico prático não
se torna mestre do mundo é porque o desdenha; e para que desejaria diminuir seu soberano poder? "Eu te
darei todos os reinos do mundo se tu caíres a meus pés e me adorares", diz a Jesus o satã da parábola. "Retira-
te", diz-lhe o Salvador, "pois está escrito: Tu adorarás somente a Deus..." Eli, Eli lamma Sabbachtani! devia
gritar mais tarde esse sublime e divino adorador de Deus. Se tivesse respondido a satã: Não te adorarei e és tu
que vais cair a meus pés, pois ordeno-te em nome da inteligência e da eterna razão!, não teria devotado sua
santa e nobre vida ao mais atroz de todos os suplícios. O satã da montanha foi bem cruelmente vingado.
Os antigos chamavam a magia prática de arte sacerdotal e arte real; e lembramos que os magos foram os
mestres da civilização primitiva, porque foram os mestres de toda a ciência de seu tempo.
Saber é poder quando se ousa querer.
A primeira ciência do cabalista prático ou do mago é o conhecimento dos homens. A frenologia, a psicologia,
a quiromancia, a observação dos gostos e dos movimentos, do som da voz e das impressões, sejam simpáticas,
sejam antipáticas, são ramos dessa arte, e os antigos não os ignoravam. Gall e Spurzëim reencontraram em
nossos dias a frenologia, Laváter depois de Porta. Cardano, Taisnier, Jean Belot e alguns outros novamente
adivinharam mais do que reencontraram a ciência da psicologia; a quiromancia está ainda oculta e é com
dificuldade que se encontram alguns traços seus na obra bastante recente e muito interessante, aliás, do
cavalheiro d'Arpentigny. Para se ter noções suficientes dessa ciência é preciso remontar às próprias fontes
cabalísticas em que se inspirou o sábio Cornélius Agrippa. É oportuno, pois, dizer algumas palavras a esse
respeito, enquanto aguardamos a obra de nosso amigo Desbarolles.
A mão é no homem o instrumento da ação; é, como o rosto, uma espécie de síntese nervosa, e também deve
ter seus traços e sua fisionomia. O caráter dos indivíduos está traçado aí em signos irrefutáveis. Assim, dentre
as mãos, umas são laboriosas, outras preguiçosas; umas pesadas e quadradas, outras insinuantes e leves. As
mãos duras e secas são feitas para a luta e o trabalho, as mãos macias e úmidas aspiram somente à volúpia. Os
dedos pontudos são escrutadores e místicos, os dedos quadrados, matemáticos, os dedos espatulados,
pertinazes e ambiciosos.
O polegar, pollex, o dedo da força e do poder, corresponde no simbolismo cabalístico à primeira letra do
nome de Jehovah. Esse dedo, pois, é por si só como a síntese da mão: se ele é forte, o homem é forte
moralmente; se é fraco, o homem é frágil. Ele possui três falanges, das quais a primeira está oculta na palma
da mão, como o eixo imaginário do mundo atravessa a espessura da terra. Essa primeira falange corresponde à
vida física, a segunda à inteligência, a última à vontade. As palmas da mão gordas e espessas denotam gostos
sensuais e uma, grande força física; um polegar longo, sobretudo em sua última falange, revela uma vontade
forte que pode chegar ao despotismo; polegares curtos, ao contrário, são caracteres dóceis e fáceis de
dominar.
As pregas naturais da mão determinam suas linhas. Essa linhas, portanto, são o traço dos hábitos, e o
observador paciente saberá reconhecê-las e julgá-las. O homem cuja mão fecha-se mal é desastrado ou infeliz.
A mão tem três funções principais: pegar, segurar e apalpar. As mãos mais macias pegam e apalpam melhor;
as mãos duras e fortes retêm mais tempo. Mesmo as mais leves rugas atestam as sensações habituais desse
órgão. Cada dedo, aliás, tem uma função especial que lhe ocasionou o nome. Já falamos do polegar; o
indicador é o dedo que aponta, é o do verbo e da profecia; o médio domina toda a mão, é o do destino; o
anular é o das alianças e das honras: os quiromantes consagraram-no ao sol; o auricular é insinuante e loquaz,
ao menos no dizer dos simplórios e das amas a quem seu dedinho conta tantas coisas: a mão tem sete
protuberâncias que os cabalistas, segundo as analogias naturais, atribuíram aos sete planetas: a do polegar, a
Vênus; do indicador, a Júpiter; do médio, a Saturno; do anular, ao Sol; do auricular, a Mercúrio; dos dois
outros, a Marte e à Lua. De acordo com sua forma e sua predominância, eles julgavam os atrativos, as
aptidões e, por conseguinte, os prováveis destinos dos indivíduos submetidos à sua apreciação.
Não existe vício que não deixe marca, nem uma virtude que não tenha seu sinal. Além disso, para os olhos
exercitados do observador, não há hipocrisia possível. Compreender-se-á que tal ciência já é um poder
verdadeiramente sacerdotal e real.
A predição dos principais acontecimentos da vida já é possível pelas numerosas probabilidades analógicas
dessa observação, contudo existe uma faculdade que se designa pressentimentos ou sensitivismo. As coisas
eventuais freqüentemente existem em sua causa antes de realizarem-se em ações, os sensitivos vêem
antecipadamente os efeitos nas causas, e existiram antes de todos os grandes acontecimentos surpreendentes
predições. Durante o reinado de Luís Filipe, ouvimos sonâmbulos e extáticos anunciarem a volta do Império e
precisarem a data de seu advento. A República de 1848 estava claramente anunciada na profecia de Orval,
que datava no mínimo de 1830 e de que suspeitamos, bem como daquelas atribuídas aos Olivarius, ter sido
obra pseudônima de Mlle. Lenormand. Mas isso pouco importa para nossa tese.
Essa luz magnética que faz prever o futuro também faz adivinhar as coisas presentes e ocultas; como é a vida
universal, ela é também o agente da sensibilidade humana, transmitindo a uns os males ou a saúde dos outros,
segundo a influência fatal dos contatos ou as leis da vontade. É o que explica o poder das bênçãos e dos
feitiços tão claramente reconhecido pelos grandes adeptos e sobretudo pelo maravilhoso Paracelso. Um crítico
judicioso e sagaz, M. Ch. Fauvety, num artigo publicado pela Revista Filosófica e Religiosa, aprecia de modo
notável os trabalhos avançados de Paracelso, Pomponace, Goglenius, Crollius e Robert Flud sobre o
magnetismo. Mas o que nosso sábio amigo e colaborador estuda somente como uma curiosidade filosófica,
Paracelso e os seus praticavam sem preocuparem-se muito em torná-lo compreensível para o mundo, pois era
segundo eles, um desses segredos tradicionais para os quais o ocultismo é de rigor, e que basta indicar aos que
sabem, deixando sempre um véu sobre a verdade para desorientar os ignorantes.
Ora, eis o que Paracelso reservava somente para os iniciados, e que compreendemos ao definir os caracteres
cabalísticos e as alegorias de que ele faz uso na coleção de suas obras:
A alma humana é material, o mens divino lhe é oferecido para imortalizá-la e fazê-la viver espiritual e
individualmente, mas sua substância natural é fluídica e coletiva.
Há no homem, pois, duas vidas, a individual ou racional, e a vida comum ou instintiva. É por esta última que
se pode viver uns nos outros, uma vez que a alma universal, como todo organismo nervoso com uma
consciência separada, é a mesma para todos.
Vivemos da vida comum e universal no embrionato, no êxtase e no sono. De fato, no sono a razão não age, e
a lógica, quando é encontrada em nossos sonhos, ocorre apenas fortuitamente e segundo os acasos das
reminiscências puramente físicas.
Nos sonhos, temos a consciência da vida universal; misturamo-nos à água, ao fogo, ao ar e à terra; voamos
como os pássaros; escalamos como os esquilos; rastejamos como as serpentes; estamos embriagados de luz
astral; tornamos a mergulhar na morada comum, como acontece de modo mais completo na morte; mas então
(e é assim que Paracelso explica os mistérios da outra vida) os maus, isto é, aqueles que se deixaram dominar
pelos instintos da besta em prejuízo da razão humana, afogam-se no oceano da vida comum com todas as
angústias de uma morte eterna; os outros flutuam e gozam para sempre das riquezas daquele ouro fluido que
conseguiram dominar.
Essa identidade da vida física permite às vontades mais fortes apoderarem-se da existência das outras e
tornarem-se suas auxiliares, explica as correntes simpáticas que ocorrem em proximidade ou à distância, e dá
todo o segredo da medicina oculta, porque essa medicina tem por princípio a grande hipótese das analogias
universais e, atribuindo todos os fenômenos da vida física ao agente universal, ensina que é preciso agir sobre
o corpo astral para reagir sobre o corpo materialmente visível; ensina também que a essência da luz astral é
um duplo movimento de atração e de projeção; assim como os corpos humanos atraem-se e repelem-se uns
aos outros, podem também absorver-se, propagar-se uns nos outros e realizar trocas; as idéias ou as
imaginações de um podem influenciar sobre a forma do outro e reagir em seguida sobre o corpo exterior.
Assim produzem-se os fenômenos tão estranhos da influência dos olhares na gravidez, assim a proximidade
de pessoas doentes causa maus sonhos, assim a alma respira algo de insalubre na companhia dos loucos e dos
maus.
Pode-se observar que nos pensionatos as crianças adquirem um pouco a fisionomia umas das outras; cada
casa de educação tem, por assim dizer, um ar de família que lhe é próprio. Nos escolas de órfãs dirigidas por
religiosas, todas as garotas parecem-se e adquirem todas essa fisionomia obediente e apagada que caracteriza
a educação ascética. Os homens tornam-se belos na escola do entusiasmo, das artes ou da glória; tornam-se
feios na prisão, e de ar triste nos seminários e nos conventos.
Aqui compreende-se que abandonamos Paracelso para entrar nas conseqüências e nas aplicações de suas
idéias, que são simplesmente as dos antigos magos e os elementos dessa cabala física que chamamos magia.
Segundo os princípios cabalísticos formulados pela escola de Paracelso, a morte seria apenas um sono cada
vez mais profundo e definitivo, que seria possível interromper em seu início exercendo uma poderosa ação de
vontade sobre o corpo astral que se desprende e chamando-o de volta à vida por algum interesse poderoso ou
alguma afeição dominante. Jesus exprimia o mesmo pensamento quando dizia da filha de Jairo: "Esta moça
não está morta, está dormindo"; e de Lázaro: "Nosso amigo adormeceu e vou acordá-lo." Para exprimir esse
sistema ressurreicionista de modo que não ofenda o senso comum, isto é, as opiniões geralmente adotadas,
digamos que a morte, quando não há destruição ou alteração essencial dos órgãos, é sempre precedida de uma
letargia mais ou menos longa. (A ressurreição de Lázaro, se tivesse de ser admitida como fato científico,
provaria que esse estado pode durar quatro dias).
Voltemos agora ao segredo da pedra filosofal que demos somente em hebraico não pontuado no Ritual da
Alta Magia. Eis o texto completo em latim, tal como é encontrado à página 144 do Sepher Yétsirah,
comentado pelo alquimista Abraão (Amsterdam, 1642):
Semita XXXI
Vocatur intelligentia perpetua; et quare vocatur ita? Eo quod ducit motum solis et lunae juxta constitutionem
eorum; utrumque in orbe sibi conveniente.
Rabbi Abraham F.’. D.’.
dicit:
Semita trigésima prima vocatur intelligentia perpetua: et illa ducit solem et lunam et reliquas stellas et figuras,
unum quodque in orbe suo, et impertit omnibus creatis juxta dispositionem ad signa et figuras.
Eis a tradução do texto hebraico que transcrevemos em nosso ritual:
"A trigésima primeira via chama-se inteligência perpétua e rege o sol e a lua e as outras estrelas e figuras,
cada qual em seu orbe respectivo. E distribui o que convém a todas as coisas criadas segundo sua disposição
nos signos e nas figuras."
Vê-se que esse texto é ainda totalmente obscuro para alguém que não conhece o valor característico de cada
uma das trinta e duas vias. (As trinta e duas vias são os dez números e as vinte e duas letras hieroglíficas da
Cabala. A trigésima primeira refere-se ao a , que representa a lâmpada mágica ou a luz entre os chifres de
Baphomet. É o signo cabalístico do od ou da luz astral com seus dois pólos e seu centro equilibrado. Sabe-se
que na linguagem dos alquimistas o sol significa o olho, a lua, a prata, e que as outras estrelas ou planetas
referem-se aos outros metais. Deve-se compreender agora o pensamento do judeu Abraão.
O fogo secreto dos mestres em alquimia era, pois, a eletricidade, e aí está a metade de seu grande arcano; mas
eles sabiam equilibrar sua força por uma influência magnética que concentravam em seu atanor. É o que
resulta dos dogmas obscuros de Basílio Valentim, Bernard Trévisan e Henri Kunrath, que pretendem, todos,
ter operado a transmutação como Raimundo Lúlio, Arnaud de Villeneuve e Nicolas Flamel.
A luz universal, quando imanta os mundos, chama-se luz astral; quando forma os metais, denomina-se azote,
ou mercúrio dos sábios; quando dá vida aos animais, deve chamar-se magnetismo animal.
O bruto sofre as fatalidades dessa luz; o homem pode dirigi-la. É a inteligência que, ao adaptar o sinal ao
pensamento, cria as formas e as imagens.
A luz universal é como a imaginação divina, e esse mundo que muda sem cessar, permanecendo sempre o
mesmo quanto às suas leis de configuração, é o sonho imenso de Deus.
O homem formula a luz por sua imaginação; atrai para si luz suficiente para dar as formas convenientes a seus
pensamentos e mesmo a seus sonhos; se essa luz o invade, se afoga seu entendimento nas formas que evoca,
fica louco. Mas a atmosfera fluídica dos loucos freqüentemente é um veneno para as razões vacilantes e para
as imaginações exaltadas.
As formas que a imaginação superexcitada produz para perturbar o entendimento são tão reais quanto as
impressões da fotografia. Não se pode ver o que não existe. Os fantasmas dos sonhos, e os próprios sonhos
das pessoas acordadas, são, pois, imagens reais que existem na luz.
Existem, aliás, alucinações contagiosas. Mas afirmamos aqui algo mais do que alucinações comuns. Se as
imagens atraídas pelos cérebros doentes são algo real, eles não podem projetá-las exteriormente, reais como
as recebem?
Essas imagens, projetadas por todo o organismo nervoso do médium, não podem afetar todo o organismo
daqueles que, deliberadamente ou não, entram em simpatia nervosa com o médium?
Os feitos do senhor Home provam que tudo isso é possível.
Agora, respondamos aos que crêem ver nesses fenômenos manifestações do outro mundo e fatos de
necromancia.
Tomamos nossa resposta emprestada ao livro sagrado dos cabalistas, e nisto nossa doutrina é igual à dos
rabinos compiladores do Zohar.

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